Só de ser estrelado por Willem Dafoe e Robert Pattinson, O farol já teria seu natural apelo. Mas ganha magnitude extra pela qualidade dos trabalhos de outros dois profissionais envolvidos na produção: o diretor Robert Eggers (do excelente A bruxa, de 2016) e o diretor de fotografia (também daquele mesmo filme) Jarin Blaschke, recém-indicado ao prêmio Bafta.
O farol tem as credenciais do cinema alternativo: passou, com reconhecimento da Federação Internacional de Críticos, na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes e ainda acumula cinco indicações ao Film Independent Spirit Awards, do qual o ator Dafoe é praticamente um amuleto, pelo risco com que mergulha em cena, filme a filme.
Coincidência extrema, o enredo de O farol assimila temas parecidos aos de duas séries desenvolvidas na TV Manchete, nos anos de 1990: O canto das sereias e O farol. Quem produz o filme, pela empresa RT Features, é o brasileiro Rodrigo Teixeira (de fitas como A vida invisível e Me chame pelo seu nome).
Filmado no Cabo Forchu (Canadá), com esplendor visual do preto e branco e proporções em aspecto de quadrado (que reforça a sensação de confinamento dos protagonistas), o filme apresenta um confronto de dois deserdados, na Inglaterra dos anos de 1890, largados à sorte, nas funções do faroleiro experiente (Thomas Wake, personagem de Dafoe) e de jovem em formação (Thomas Howard, vivido por Pattinson).
Há dualidade e um jogo de identidade adulterada (que dá margem a muitas divagações sobre a essência dos personagens), racionamento de comida, delírio e uma tênue linha entre imaginação e vivência, no texto assinado pelo diretor e pelo irmão dele, Max. Em muito, o universo de penúria dialoga com o visto em A bruxa (2015).
O caos se instala, pela progressiva insubordinação de Howard, ante a condições de frustrações pessoais e à quebra de vínculos com normas e manuais que ele estudou — quando se dá conta, está jogado à realidade em que vigora outra lei: pesa o justiçamento particular imposto pelo colega Wake (que poderia muito bem ser uma projeção de si). Aos poucos, Howard adere a rituais mecânicos, com reflexos que minimizam sua humanidade.
Numa das cenas mais fortes, o atormentado protagonista espanca uma gaivota. Vale daí ressaltar ainda o antropomorfismo representado pelas gaivotas que circundam o terreno inóspito de Wake e Howard. A natureza, a exemplo do enigmático cinema de Lars von Trier, define muito dos comportamentos, em cena: do nevoeiro, que favorece um silêncio sepulcral, à sondagem dos efeitos de uma futura tempestade, passando pelo calor da luz (transmitido pela excepcional fotografia) que parece secar a atmosfera viscosa impressa na fita e que inunda muitas das sequências.
Com elaborado linguajar de marinheiro (remissivo a Billy Bud, clássico longa com Terence Stamp), O farol prega a desavença e submissão masculina, consagrada em fitas com as quais dialoga: Jogo mortal (de Joseph L. Mankiewicz — e que alinhou Laurence Olivier e Michael Caine) e Mulheres apaixonadas (de Ken Russell). O ressaltar de necessidades físicas, praguejamentos e medo com a escassez de provisões (reinante na isolada ilha) dão o tempero à la Robert Eggers.