Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Cronista que puxa o fio da memória









Carlos Heitor Cony era um jornalista que fazia crônicas. E, por isso, muitas vezes, ele escrevia textos políticos que desagradavam a gregos e troianos. Por isso, o presidente e editor da Confraria dos Bibliófilos do Brasil, José Salles Neto, decidiu esquecer as crônicas políticas e se concentrar nos textos de teor literário, com temas existenciais ou memorialistas. Salles selecionou 32 crônicas para a edição especial da Confraria dos Bibliófilos.

Há oito anos, procurou Cony com a proposta de fazer uma edição especial de suas crônicas. O escritor refugou: ;Não gosto de antologias de crônicas;. Ele não queria confusão com as editoras que detinham os direitos de reprodução dos livros.

Mas, Salles não desistiu do projeto, que acalentava havia muito tempo, com a intenção de que fosse ilustrado por Liberati, artista gráfico, desenhista e chargista, que passou pelos mais importantes jornais e revistas do país: ;Pensei no Liberati porque ele representa o rosto das pessoas de maneira magistral. É um chargista de mão cheia. Colecionava as charges dele havia muito tempo. Ele tem um estilo que estaria próximo do inventado por Jaguar. Esse é um livro que está sendo gestado há muitos anos;, comenta Salles.

As edições da Confraria dos Bibliófilos do Brasil são decididas por votação. E as crônicas de Cony sempre estiveram entre as mais requisitadas. Elas tocam em temas existenciais, memórias e evocações. Com exceção de uma, dedicada ao poema O corvo, de Edgar Allan Poe, todas foram publicadas no caderno Folha Ilustrada, da Folha de S. Paulo.

A corrida imaginária de submarinos noturnos no Rio de Janeiro dos anos 1950 é pretexto para uma divertida crônica sobre o amor fugaz dentro dos carros em uma época na qual não havia motéis. Uma viagem à Andaluzia inspira reflexão sobre Dom Quixote e a loucura de desejar um mundo melhor: ;Atravessei a Andaluzia, deixei o carro em Málaga, comprei umas garrafas de vinho muito doce, tomei o navio e deixei para trás a vontade de ser um homem louco, embora melhor;.

Embora tenha estampa de sisudo, Cony brinca sobre a comédia de erros dos amantes em Aderbal num rendez-vous da Bento Lisboa. Diverte-se com os lances de um homem que o detestava. A mistificação de certas instalações de arte são alvo de fina ironia: ;O problema das instalações, em princípio, é que elas não chegam a ser bonitas e, no geral, não chegam a ser nada, além de uma intenção de dizer alguma coisa que não precisa ser dita. E, dita, fica por isso mesmo;.

Uma das crônicas mais pungentes é a dedicada a Chaplin, tema recorrente no escritor: ;As engrenagens de uma sociedade endurecida no inumanismo trituram e despedaçam o fraco homenzinho que insiste em não morrer, que insiste em manter, intactas, a dignidade e a vida;.

Em relação a outros cronistas, Cony não era muito de se ater aos fatos do cotidiano presente ou imediato. Tendia a evocar acontecimentos do passado: ;É por isso que as crônicas políticas são muito datadas. Mas, ao mesmo tempo, ele também fazia muitas crônicas literárias, crônicas que serão lidas daqui a 100 anos. No máximo, ele criava um laço com o momento. Estacava naquilo que estava escrevendo;.

Quase memória é um dos livros mais marcantes de Cony. Ele tinha talento para explorar uma veia memorialista: ;Tanto que as crônicas deles iam para o caderno de cultura. Algumas crônicas são puxadas para artigos. Mas, essas são as mais datadas. As melhores são as de evocações;.

As crônicas literárias se expressam em uma linguagem muito apurada, precisa e vivaz. ;Eu acho que a linguagem do Cony muito boa;, comenta Salles. ;É um escritor de frases longas, não é de períodos curtos. Por trás daquilo, tem um escritor, mas sem ser pedante. Nunca quis ostentar cultura. Porque existem cronistas que querem mostrar erudição. Mas o Cony queria mostrar conhecimento.;

Além do fraseado elegante, as crônicas de Cony também se distinguem pela estrutura muito próxima do conto: ;Elas se afastam do formato clássico da crônica do dia a dia. Esse é outro aspecto literário dos seus textos. Por isso, qualquer pessoa pode abrir o livro, ler e gostar das crônicas. Não são datadas;.

A memória é um filão inesgotável. O olhar de Cony se manifesta por meio das experiências que ele viveu: ;Sempre revive os fatos e cria novas versões sobre eles. Ele escreveu quatro crônicas sobre Charlie Chaplin, pela visão humanista que o fascinava no ator e diretor;.

Cony sustentou opiniões, muitas vezes, irritantes. Foi conservador e contestador. E tinha uma visão pessimista da existência humana. Tem muitas crônicas que falam da morte. E, alguns, chegam a considerar que ele seria cínico. Mas Nelson Rodrigues escrever que Cony era o falso cínico: ;Acho que o Nelson Rodrigues estava certo;, comenta Salles.

E emenda: no fim, desce e põe os pés no chão para ver a miséria humana. Criava sonhos nos quais parece que saía da terra. ;E, logo voltava ao chão para exercitar a compaixão humana. Escrevia sobre os balões subindo na época das festas de São João, mas sempre descia para ver a miséria das favelas;.

As edições da Confraria dos Bibliófilos do Brasil são decididas por votação. E as crônicas de Cony sempre estiveram entre as mais requisitadas: ;E ocorre algo interessante, existem pessoas jovens na Confraria. Cony era querido por várias gerações de leitores;.


Carlos Heitor Cony ; Seleção de crônicas
Ilustrações de Liberati/96 páginas. Edição da Confraria dos Bibliófilos do Brasil. Venda exemplares avulsos e filiação à Confraria pelo fone: 3435-2598.


Um vagabundo no século 20
Foi a partir de O vagabundo que Chaplin passou a trabalhar ;em equipe com a realidade;, segundo a clássica afirmação de Eisenstein. Émile Zola foi acusado de crime igual quando procurou subordinar a ficção à realidade imediata que o circundava. Em O vagabundo, o ébrio, o grosseiro e o sensual de Carlitos banca o tirano cedem lugar ao futuro moralista que se completaria em Ru da Paz: ;O amor é ajudado pela força. A docura do perdão traz a esperança e a paz; foi a epígrafe que o próprio Chaplin escreveu para explicar a sua primeira parábola social. Um dos truques geniais de Chaplin é que ele se diverte e diverte os outros repetindo aquela cena dos atores do Hamlet: ;a reconstituição do crime diante dos assassinos. Ele reconstitui, diante de cada assassino, a todos nós o nosso crime. Saímos dos filmes de Chaplin com a consciência mais ou menos pesada de que, em algum lugar, em algum tempo, por algum motivo, cometemos um crime horrendo, de cuja expiação somos impotentes;.