;Nossa união foi muito forte. No Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, a revolução, que pode vir por meio das mulheres, surpreendeu. Brasília foi uma arena de discussão. Em alguns momentos, nos vimos desrespeitadas na fala e no espaço. O retorno, porém, veio sem agressão, num discurso a favor de sentimentos. Prêmio recebido é interessante, mas o microfone é mais. Tivemos um espaço de fala que normalmente não se tem;, comenta Julia Zakia, codiretora de Rã, considerado o melhor curta do evento encerrado domingo passado.
Reivindicações de respeito e exemplos para a nova geração de luta feminina foram ênfases de Zakia, ao falar do evento. Ao lado da codiretora de Rã, Ana Flávia Cavalcanti, a cineasta espera que encontros e ações práticas dos coletivos não sejam liquidados. ;A força do coletivo deixa a gente protegida de tudo;, avalia a diretora. Num momento emblemático do Festival de Cinema, houve a leitura do Manifesta, mobilização que projetou preceitos como o de que ;Nada será feito sobre nós (mulheres) sem nós;.
Ouvidas pelo Correio, as marcantes presenças femininas no evento revelaram desafios próprios do cinema e futuras realizações. Zakia, no próximo filme, vai falar de ;uma mãe solteira, diante da beleza e dos perrengues da maternidade; e, noutro (ao lado de Ana Flavia), vai propor algum tema ;urgente;.
Sabrina Fidalgo
;Meu propósito maior é poder ter a minha criatividade, visão de mundo e olhar crítico;, observa a diretora carioca Sabrina Fidalgo, vencedora do prêmio de melhor direção de curta-metragem por Alfazema. A satisfação com o prêmio na capital reforça a identidade junto a tópicos de brasilidade tão potencializados na recente festa: ;Ser brasileira, para mim, significa levar comigo o legado dos meus ancestrais e, ao mesmo tempo, ter um olhar futurista-tropical diferenciado do Hemisfério Norte que tanto amamos;.
Entre os futuros planos, Sabrina aponta o encerramento da Trilogia do Carnaval (que já rendeu os curtas Rainha e Alfazema), com curta a ser filmado em fevereiro de 2020. Junto com a idealização de longa de ficção chamado Bolero, a diretora apostará na feitura de documentário sobre a história do funk no país. ;Sou movida pela possibilidade de escrever e reescrever histórias nunca antes contadas, com outros protagonistas, e pensar novas estéticas, linguagens e narrativas;, avalia.
Thaís Borges
1 - Diante de um desafio de expressão, a vontade de compartilhar tramas e o interesse pelo aprendizado. Movida por essa conjuntura, a diretora de cinema formada em Brasília e Cuba Thaís Borges colheu resultados na projeção do longa O tempo que resta (selecionado junto a seis concorrentes centrais), considerado pelo público o melhor filme durante o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Thaís foi uma das cineastas que engrossou a visibilidade das mulheres durante o evento: entre 42 prêmios (atribuídos para longas, curtas e para as fitas concorrentes na Mostra BRB Brasília), 27 saíram por produções conduzidas por mulheres. ;Ter voz é uma responsabilidade, principalmente num contexto político sombrio como o atual. Penso em como me reconhecer na humanidade do outro e abrir caminhos para o diálogo;, explica a premiada diretora do documentário, ao definir suas motivações. ;Sempre que algo me emociona para além de um encanto cotidiano, sinto vontade de fazer um filme;, completa. Junto com ela, duas outras realizadoras projetaram o talento da capital nos resultados da Mostra BRB Brasília: Adriana Vasconcelos (Mãe) e Glória Teixeira (Dulcina).
Thaís Borges, entusiasmada com a conjuntura (atualmente, retomou estudos de aperfeiçoamento, na Irlanda) e com as recentes realizações, adianta ao Correio o próximo projeto. ;Comecei a trabalhar num filme que venho gestando há sete anos, uma animação que mistura documentário e ficção. A ideia surgiu de uma experiência pessoal bastante dolorosa, mas que resultou numa descoberta tão bonita quanto surpreendente. É um projeto que, de certa forma, traz uma metáfora de como a arte nos salva, promove catarses e sempre indica resistência;, diz.
Anne Celestino
2 - Aceitação e plena inserção no meio do audiovisual foram sinalizados para a atriz pernambucana Anne Celestino, eleita, aos 21 anos, melhor atriz pelo trabalho no longa-metragem Alice Júnior. ;O festival terminou sendo o festival das mulheres. Acabei fazendo história como mulher trans. Tudo foi muito simbólico, teve muito discurso político contra o machismo da produção cinematográfica, e ainda teve nossa carta Manifesta;, celebra a intérprete e protagonista.
;Há a questão social de pessoas trans não serem incluídas nas artes ; não existe isso de meia representatividade: nós devemos nos representar e protagonizar nossas histórias. Como trans, estou ocupando espaço a partir de talento que tenho: por lutar, vou existir e resistir;, comenta.
Camila Kater
3 - Realocar a representação das mulheres num cinema nacional que é ;excludente e desigual; é uma das metas da diretora de Carne, Camila Kater, que já acumula 11 prêmios para a animação festejada em circuito que vai de Brasília até cidades de países como Suíça, Canadá, Alemanha e Espanha.
;Infelizmente o cenário político brasileiro não é muito motivador para financiamento de filmes, mas a censura que estamos vendo só me faz ter mais vontade de me expressar com filmes. Quero explorar as infinitas possibilidades da animação. Ser ouvida deveria ser o mínimo para qualquer artista, não deveria ser uma luta;, comenta Kater. Assegurar a cinco animadoras o direito de expressão e a criação de um espaço coletivo foi uma motivação para a diretora de Carne. Mesmo que ;branca, cis, de classe média e com o privilégio de poder estudar arte;, como ela mesma diz, Kater não tinha se visto com reconhecimento na função de animadora.
A realização de um musical animado com temas tabus está nos projetos da realizadora de Carne. ;Ele está no meio de nós é um projeto de curta sobre meu maior pavor quando criança: Jesus Cristo. A ideia é discutir a iconografia do catolicismo, a imagem eurocêntrica de Jesus e a iniciação religiosa;, adianta.