[FOTO1]As histórias infantis chegam para Miriam Leitão via crianças. Dessa vez, foi a sobrinha-neta, Mel, quem deu a ideia para As aventuras do tempo, que a autora lança no domingo (08/12) na Livraria Leitura do Pátio Brasil Shopping. Mel pediu à avó, Beth, irmã de Miriam, que contasse uma história da infância. Um passado comum na fazenda dos avós, ou bisavós de Mel, emergiu da narrativa e acabou por motivar o livro, o quarto da autora destinado ao público infantil.
Quando recebeu uma mensagem da irmã contando do interesse da pequena Mel, Miriam se deu conta de que havia ali um universo de temas. ;Eu vi que ela estava entendendo o tempo e pensei que o tempo seria uma coisa interessante para matéria-prima de história infantil;, conta. Por acaso, ela estava a caminho de Caratinga, no interior de Minas Gerais, cidade natal na qual visitaria um irmão. As lembranças de infância percorreram a memória de Miriam e tomaram forma de história. ;E essa história foi sendo escrita na minha cabeça;, lembra.
As aventuras do tempo se passa numa fazenda à beira do Rio Doce, do qual a pequena Mel mantém certa distância por conta do perigo representado pela correnteza, mas também por ser território dos índios krenak, que querem manter longe a mão destruidora do homem branco. Brincadeiras de fazenda, ao ar livre, fazem parte do cotidiano de Mel, mas é no rio, sobre o qual pairava uma ponte sistematicamente destruída pelos índios, que se dá a parte mais bonita da narrativa. As aventuras do tempo trata de amizade, identidade, diálogo, compreensão das diferenças e reconhecimento do outro, temas urgentes para um Brasil mergulhado em intolerância.
Miriam conta que algumas das histórias narradas no livro realmente ocorreram, caso da ponte queimada pelos krenak para evitar o acesso do homem branco a seu território. ;Eles não queriam a travessia do rio pelo pessoal que estava pressionando a floresta. E eles chamam o Rio Doce de Watu, então tinha isso, eles queimavam a ponte;, lembra Miriam. ;Recentemente, falei com um krenak que dizia que os avós viajavam o bastante para chegar lá e queimar a ponte. Hoje, o que existe é de mata preservada é o Parque do Rio Doce e um pouco da reserva dos krenak.;
Falar dos índios, da mata, dos animais e de identidade em linguagem infantil e ilustrada é uma maneira, também, de criar uma memória para as crianças. Temas sociais e ambientais costumam estar muito presentes na produção infantil de Miriam. Em 2013, ela olhou para os céus para escrever A perigosa vida dos passarinhos pequenos e, em 2015, quis alertar para o racismo em Flávia e o bolo de chocolate. Agora, é para a preservação da memória que ela se volta. ;Eu queria fazer também uma homenagem ao ato de contar histórias para crianças, porque assim você está ajudando a construir o imaginário coletivo, a memória coletiva;, explica.
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As ilustrações ficaram por conta da artista Marcella Tamayo, que brincou com as noções de gerações e continuidade para criar o mundo imagético do livro. ;Ela foi muito sensível e construiu essa ponte da Mel criança dando a mão à Beth, que dava a mão à avó. É uma coisa geracional, eu queria juntar tudo isso e buscar na infância as histórias que ouvia;, aponta Miriam.
A autora tem lançado cerca de um livro infantil por ano, mas essa média é apenas uma coincidência. Quando se trata de escrever para crianças, ela não se impõe prazos nem temas. ;A história infantil é onde não tenho tempo. Tenho deadline para tudo na vida, menos para história infantil. A hora que a história vem, vou e escrevo. O que quero é que o livro propicie debates, não que seja uma lição de moral;, avisa.
As aventuras do tempo
De Miriam Leitão. Editora Rocco, 40 páginas. R$ 49,90. Lançamento no domingo (08/12), às 15h, na Livraria Leitura do Pátio Brasil Shopping.
Entrevista: Miriam Leitão
É importante falar de ancestralidade no Brasil de hoje?
Esse livro foi escrito no final do ano passado, e agora ficou urgente discutir ancestralidade de todo mundo. Tenho conversado muito disso com meus amigos negros, que falam muito dessa busca da ancestralidade até como maneira de afirmar seu amor por si mesmo. Isso para os indígenas também. Todos nós brasileiros temos que pensar de onde viemos, o que trazemos como herança, o que é importante para o futuro. Estar com esse valores desorganizados nesse momento e bombardeados por coisas que, às vezes, são sem importância, e outras que são destruidoras de valores. Esse livro mistura tudo isso, todas as minhas aflições.
No livro, você fala de um Rio Doce saudável e sem as interferências humanas que levaram a tragédias como a de Mariana...
Falei do Rio Doce lindo porque não quis dar a má notícia para a criança, mas elas sabem da má notícia. Quando a gente leu para a Mel, ela disse que ouviu a notícia de que o rio está sujo por causa da lama que chegou. Ao contar como era limpo o rio, você pode também ajudar as crianças a conversarem com seus pais e professores sobre a questão ambiental, que é recorrente na minha obra infantil. E também a questão indígena, que não é entendida. Eles falam no atual governo que é pouco índio para muita mata, mas a questão não é essa. O indígena tem um papel fundamental na preservação da floresta, eles prestam um serviço ao país.
O que te motiva a escrever em um país no qual mais da metade dos estudantes têm desempenho abaixo do mínimo quando se trata de leitura e compreensão, segundo dados do Pisa 2018 divulgados esta semana?
Essa é uma grande batalha. A gente tem que continuar insistindo, fazendo livros que as crianças vão ler. Acho que a criança que tem um livro na mão, mesmo antes de aprender a ler, ela tem um valor. Acredito no livro. Vou insistir nesse ponto e vou continuar fazendo, indo às escolas, às feiras. Vários problemas levam a esse resultado. O pouco índice de leitura no Brasil e a chegada da tecnologia que pode achar que o livro não é o caminho. Por isso escrevo para criança pequena, para que elas gostem desde pequenos. Quando viajo para eventos literários, fico impressionada como eles estão acontecendo de forma muito intensa. Este ano, a Bienal bateu todos os recordes e o Salão ler, o dobro do ano passado. E fui a Bananeiras, na Paraíba, num festival de literatura e estava cheio de gente na rua querendo ouvir falar de livro. Fui na Fliaraxá e vi uma plateia batendo palmas de pé para a Conceição Evaristo quando ela entrou. E ela não ia nem falar. Acho que tem uma força vindo muito forte nesses festivais e salões literários pelo Brasil afora. Há uma crise no mercado livreiro, com livrarias grandes fechando, mas os festivais estão acontecendo no Brasil inteiro e tem gente que faz fila para ouvir.
E nunca mais você passou pela hostilidade que fez os organizadores da Feira do Livro de Jaraguá do Sul (SC) te desconvidarem?
O que teve em Jaraguá do Sul foi lamentável, um equívoco comandado por um cara do clube de tiro, mas isso não representa Jaraguá, e sim um grupo estridente que quis assustar os organizadores, mas a mim não assustaram. Eu venho de muito longe, de um tempo que parecia que a gente tinha perdido todas as guerras, e a gente superou. A gente vai superar de novo. Essa visão de mundo que discrimina o negro, a mulher, a orientação sexual, que despreza o meio ambiente, não tem futuro, não conversa com o século 21. Tem uma hora que isso deixa de ser colocado para o país como sendo a visão oficial do governo. E os governos passam, mas os valores ficam, o país fica. Não vamos achar que é para sempre.