Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Porque Giocondo Dias


;Meu pai, o mestre Lula, recebia o capa preta do partido que desembarcava à noitinha do trem da Great Western, na estação de Itabaiana, Paraíba, naqueles remotos tempos dos anos de 1940. Aquele ou outro camarada, à sombra da clandestinidade, estava sempre de passagem e trazia a orientação do comitê central às bases espalhadas pelo país afora. Não raro trazia também um livro, que emprestava ao dirigente local, literatura que ia de textos doutrinários a obras de ficção enaltecendo heróis do povo.

O volume era devolvido pontualmente no outro dia, no regresso do enviado. Esse expediente exigia certa disciplina e, mesmo sendo leitor voraz, meu velho varava a noite em claro, lendo sem parar à luz de candieiro, pois o cansado ;motor da luz;, engenhoca da municipalidade, estancava logo cedo deixando a cidade às escuras.

Foi nesse clima que me alfabetizei tentando decifrar os quadrinhos de Brick Bradford, publicados no suplemento dominical do Jornal do Commercio, do Recife, e soletrando trechos do Menino de engenho, de Zé Lins do Rego, que meu pai lia para nós depois da ceia. Foi de sua boca que ouvi pela primeiras vez referências a Giocondo Dias, o ;cabo vermelho;, como foi apelidado, que tomou um quartel em Natal, durante a Intentona Comunista de 1935. Era um tempo de guerra na Europa e um dia assistimos à despedida de um trem lotado de pracinhas que iam lutar na Itália. Houve choro e banda de música na estação. No Rio de Janeiro, Prestes estava preso sob o tacão da ditadura Vargas. Jorge Amado contaria tudo depois nos seus Subterrâneos da liberdade.

Passado o tempo, com a vitória dos Aliados sobre o nazismo e o regresso da FEB, mestre Lula explicou-me o que acontecia e as mudanças que se prenunciavam com a redemocratização e a queda da ditadura no Brasil, com a subsequente libertação de Prestes e a volta à legalidade do Partido (Comunista). Até mesmo o significado do meu nome ele me explicou como sendo uma sua homenagem ao grande Lenine. Vieram as eleições e os comunistas obtiveram estrondosa votação. Prestes, surfando na onda, era eleito senador e deputado. Como deputado se elegeu também Giocondo, na Bahia. Meu pai exultava porque fora eleito vereador em Itabaiana! Um ledo hiato tão glorioso quanto breve. Porque em seguida aconteceu o inevitável, obra do governo reacionário do marechal Dutra: a cassação, em 1947, do partido e de todos os comunistas legitimamente eleitos.

Enfim, tudo me veio por essa via paterna. Mesmo depois de nos deixar, vítima de crônica cardiopatia, no ardor de seus trinta e nove anos de idade, sintonizado com o mundo e com sua aldeia, ainda hoje Mestre Lula me sopra nos ouvidos ideias e até decisões, como se fora uma ;entidade;, uma voz do além, um espírito do bem. Foram esses ;sopros;, eivados, diga-se de passagem, de ;materialismo histórico;, que me levaram à militância do partido no final dos anos de 1950, na fase em que este já repudiava a solução pela ;luta armada; e Giocondo Dias pontificava no semanário Novos Rumos (São Paulo), tornando-se um paladino desta inarredável posição desde as lutas internas no comitê central. Por coincidência, eu era correspondente do jornal na Paraíba e lia assiduamente os seus textos. A sua lição de vida, atravessando longa clandestinidade, ficou-me para sempre como exemplo.

Aqui saio pela tangente: tudo isso tem e não tem a ver com o filme sobre Giocondo. É puro subjetivismo que não transparece a não ser em imperceptíveis entrelinhas de sua narrativa. Não vou dar aqui nenhuma pala, perdão, spoiler do meu filme, mesmo porque seria laborar em causa própria. Mas sinto que num momento em que o presidente funda um partido que tem, como emblema, um pesado painel composto todo ele de balas de metralhadora e vê o país como colossal praça de guerra, está na hora de fazermos mais filmes na linha em que intentei. Ou quem sabe seguirmos todos o papa Francisco em sua pregação pela paz mundial!”

Vladimir Carvalho é cineasta