Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

O sangue amazônico

Documentário sobre grilagem na Amazônia, em exibição hoje, é o único representante do DF na mostra competitiva

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Duas lideranças femininas ; Maria Ivete Bastos e Osvalinda Marcelino Pereira ; representam diferentes facetas da Amazônia brasileira. É a partir delas que a história do documentário O tempo que resta, dirigido por Thaís Borges, vai ser contada na noite de hoje, no 52; Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Por isso, o filme busca dar visibilidade aos crimes cometidos por milícias madeireiras no Pará.

Surpresa com a seleção para a mostra competitiva, Thaís não esconde a alegria e a expectativa em exibir o filme pela primeira vez naquele que se consagrou como um dos maiores festivais do país. ;Não poderia haver estreia mais feliz: estarei em casa, num festival que acompanho desde a adolescência e onde me apaixonei pelo cinema;, pontua a cineasta, única representante do Distrito Federal na categoria.

As protagonistas do documentário também são as personagens principais da luta feminina na Amazônia. ;Marcadas para morrer, elas resistem nos pequenos gestos cotidianos e em grandes atos de coragem;, ressalta a diretora, em entrevista ao Correio. É por isso que as histórias delas se espelham uma na outra.

;Maria Ivete e Osvalinda têm muito em comum: idade, número de filhos, tempo de casamento, histórico de graves problemas de saúde, luta assimétrica contra um modelo de desenvolvimento que se tenta implementar na Amazônia desde o governo militar, de apropriação privada de recursos naturais e negação de direitos aos povos da floresta;, sintetiza a cineasta.

Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém (PA), em 2011, Maria Ivete estava ameaçada por denunciar crimes de fazendeiros e grileiros. Conhecida pela defesa socioambiental ; pela qual ganhou o prêmio Mahatma Gandhi, em 2006 ;, Maria Ivete precisou viver sob escolta policial durante anos. Ver o assassinato de companheiros, como a missionária Dorothy Stang, em 2005, tornou a imagem de sua cabeça posta a prêmio ainda mais real.



O que começou como trabalho de jornalismo independente, em 2013, ajudou a dar vida e cor ao documentário, que ganhou outra protagonista fundamental, Osvalinda, quando a cineasta a conheceu há quatro anos. Romper o silêncio e a dependência das milícias do oeste paraense diminuiu a tranquilidade da agricultora.

;Ela criou uma associação de mulheres para capacitar agricultores e difundir o Sistema Agroflorestal que, no seu lote, já rendia centenas de quilos de polpas de frutas anualmente, produzidas com assistência técnica do Instituto de Pesquisa da Amazônia. As visitas da caminhonete branca da ONG ambientalista, confundida pelos jagunços dos madeireiros com o carro do Ibama, bastaram para gerar o boato de que a agricultora denunciava o esquema criminoso;, conta.

Ao todo, o documentário custou R$ 192 mil. O que começou como de modo totalmente independente ; quatro viagens em quatro anos ; ganhou coprodução da Globo News e da Globo Filmes, o que possibilitou que a equipe e o tempo de estada pudessem ser maiores na última viagem. ;Gosto que tenha sido assim, porque grande parte das cenas só foi possível graças a uma relação construída ao longo dos anos;, ressalta.

Por meio da Lei do Audiovisual, o investimento das empresas foi de R$ 150 mil. Os 42 mil restantes vieram de recursos próprios. Formada em Comunicação Social pela Universidade de Brasília (UnB), Thaís deixou um cargo público para retratar histórias como as de O tempo que resta (2019), seja como jornalista independente, seja como documentarista. Hoje, além da direção, também assina o roteiro, a montagem e a assistência de câmera do documentário.


As leis que trepidam

O sangue e a seiva derramados na Amazônia pelas serras do agronegócio e pelas ferramentas da mineração estarão presentes na telona num momento em que o país sofreu com flexibilização de leis ambientais e bateu recorde de desmatamento e queimadas, reflexos da grilagem. Para se apropriarem dos terrenos de forma ilegal, os grileiros tiram indígenas, ribeirinhos, quilombolas e pequenos produtores, violentamente, de onde vivem, para desmatar a terra, queimar árvores e, depois, atingirem maiores lucros nos espaços.

;É curioso que as atenções tenham se voltado para as queimadas na Amazônia apenas quando a cidade de São Paulo ficou coberta por uma nuvem negra. Fica muito claro o que é central e o que é periférico na construção da narrativa de um país. Tratar Amazônia como periferia é o que possibilita números tão alarmantes de conflitos por terra e recursos naturais no Brasil. A violência no campo gera estatísticas equivalentes às de uma guerra civil;, critica a documentarista.

As protagonistas foram escolhidas por serem símbolos da resistência ante ao avanço do desmatamento na Amazônia. Maria Ivete e Osvalinda tiveram as liberdades privadas ; ficaram anos afastadas dos filhos, por questão de segurança. Mais do que isso, quase se tornaram duas vítimas mortais nessa estatística e, por isso, a história que o documentário traz é sobre o tempo que ainda lhes resta.

*Estagiária sob supervisão de Severino Francisco



O tempo que resta
Exibição hoje, às 21h (no Cine Brasília, 106/107 Sul), do documentário de Thaís Borges, antecedido pelos curtas Marco e Chico Mendes ; Um legado a defender. Ingressos: R$ 20 e R$ 10 (meia). No mesmo dia, às 20h30, com entrada franca, exibição nos complexos culturais de Planaltina e de Samambaia, além de apresentação no IFB Recanto das Emas. Também hoje, no Museu Nacional da República (Esplanada), com entrada franca, às 14h, Jackson ; Na batida do pandeiro, de Marcus Vilar e Cacá Teixeira. Classificação indicativa livre.



Os curtas da noite


; O filme de ficção Marco, de Sara Benvenuto, desembarca em Brasília, direto do Ceará, para contar a história de Isadora, que volta à cidade onde nasceu depois de saber da doença do pai. O mote da trama vem do reencontro com a mãe: juntas, começam a reviver as tensões em meio à dor.


; No documentário brasiliense Chico Mendes ; Um legado a defender, de João Inácio, outra atração da noite, o ponto de partida é uma carta deixada por Chico Mendes, símbolo da proteção ambiental na Amazônia, para os jovens do futuro. A reflexão fica no que os jovens, sobre quem o ambientalista escreveu, terão como resposta.