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A figura quase mitológica de Boca de Ouro, criada por Nelson Rodrigues na década de 1960, e o universo de ambição, amores e pecados que o cerca parecem ter congelado no tempo. Mais de cinquenta anos depois, o ator Marcos Palmeira interpreta o temido e respeitado bicheiro do bairro de Madureira, no Rio de Janeiro, no novo longa de Daniel Filho. Apesar da fotografia envelhecida, o filme revela um contraste de épocas, mas, como uma boa dramaturgia rodriguiana, escancara debates políticos e sociais que perduram até os dias de hoje.
[SAIBAMAIS] Violência, poder, ganância, machismo, traição, amor e o que é a verdade se nada mais do que um ponto de vista permeiam a narrativa encabeçada por duas protagonistas: Guigui, interpretada por Malu Mader, e Celeste, personagem de Lorena Comparato. Diante do assassinato do bicheiro, o jornalista Caveirinha procura a ex-amante de Boca de Ouro, Guigui, para construir uma reportagem sobre a vida do contraventor.
Em Brasília para a exibição do filme na mostra Hors-Concours do 52; Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, o ator Marcos Palmeira conversou com o Correio sobre a atualidade da dramaturgia de Nelson Rodrigues e a necessidade da arte e da cultura em construir pontes de diálogo e reflexão.
Como é resgatar o texto de Nelson Rodrigues, sobretudo um que aborda questões ligadas à violência e ao machismo, no momento que vivemos?
Acho que é mostrar como Nelson Rodrigues nunca esteve tão atual. As pessoas têm muita dificuldade de entender o que as incomoda em Nelson Rodrigues. Ele incomoda a gente, porque fala de coisas que são nossas, mesquinharias, relações pequenas, violência, machismo, homofobia. Todas essas questões, ele traz à tona de uma maneira brilhante dramaturgicamente.
Como tem sido a recepção do público diante da inserção dessas temáticas no longa?
Estou muito feliz com a reação do público de perceber isso e não criticar. A gente está vendo o Brasil, o que estamos vivendo no Brasil hoje é um reflexo disso, quer dizer, a sensação é que a gente está expurgando o que há de pior em nós todos para a gente poder se redescobrir como cidadão brasileiro, como gente.
Como avalia a inserção do filme no contexto que o Brasil e o mundo vive hoje?
Ao mesmo tempo que é muito louco o que está acontecendo, é muito positivo para dar uma chacoalhada, para a gente repensar estratégias de ação, de construção de pontes entre as pessoas, para a cultura também se reavaliar. O que a gente quer de verdade? É muito ruim falar que estou otimista, porque estamos vivendo um momento muito delicado, mas acho que é importante passar por tudo isso e a gente precisa ter muita tranquilidade para fugir da polarização. Não sou eu contra você. A polarização destrói o Brasil há anos. Quando você tem um discurso de um presidente que falava ;nunca antes nesse país;, e agora tem um discurso de um presidente que fala ;pela primeira vez nesse país;, são os radicais se encontrando e ninguém ganha. Qual o grande projeto cultural do Brasil?
Sim, qual o grande projeto do Brasil?
Qual o grande projeto educacional do Brasil? De saúde? Não tem. É só uma discussão de quem é mais legal do que o outro. A gente precisa encontrar esse lugar do meio, esse lugar de encontro. Aí, falam: ;você é de direita;, ;você é de esquerda;. A ideologia serve para gerir a nossa vida. Para gerir o país é gestão, é igualdade social, justiça social, melhor distribuição de renda, projetos eficazes. Não quero brigar por ninguém, não quero ser contra. Quero construir pontes. Não quero ser contra. Acho que o filme gera várias reflexões nesse sentido. É um bicheiro, é a relação dele com a sociedade, a hipocrisia das nossas gerações com essa sociedade.
A trama se desenrola a partir do relato de Guigui sobre quem é o Boca de Ouro. Automaticamente, esse discurso se atualiza para as chamadas fake news. Vocês pensaram nisso?
Sim. O que é fake o que não é, isso é o maior perigo hoje. A gente reposta tudo. É preciso ter calma, vamos refletir, vamos entender. Exatamente, o que é a verdade? Será que existe uma verdade absoluta? Ou é do ponto de vista de cada um? Cada um constrói a sua verdade e em cima dela faz os seus caminhos? A gente tem que baixar a bola e refletirmos profundamente. Viver essa depressão para poder sair dessa lama e brotar uma flor bastante fértil.
Esta não é a primeira vez que você participa do Festival. Em 1997, você dividiu o prêmio de melhor ator em Anahy de las missiones com Ernesto Piccolo, por Como ser solteiro. Como é estar aqui de volta?
Tenho grandes memórias de momentos mágicos com colegas, com amigos que fiz e tenho até hoje. Poder estar hoje aqui neste Festival, na capital federal, mostrando a cultura é fundamental. Como eu disse na abertura da sessão, quanto mais eles tentam amarrar a cultura, mais asas a gente ganha. A gente gosta de voar, somos livres e é nisso que a gente tem que acreditar.