Num ano em que o Brasil conquistou prêmios importantes em festivais fundamentais da indústria audiovisual como o de Cannes (França), às vésperas da entrada em cartaz de A vida invisível (o filme pré-selecionado para representar o Brasil no Oscar), fica clara a projeção do país, por levar ao mundo (via coproduções), os talentos nacionais. Até 9 de fevereiro, data da festa dos premiados da estatueta hollywoodiana, o caminho é longo e inclui duas paradas: em 10 de dezembro, os representantes de 93 países candidatos às vagas do Oscar são afunilados para apenas 10, enquanto a lista dos finalistas chegará em 13 de janeiro de 2020.
Como aposta forte ao Oscar ; inclusive respaldada por especialistas da indústria, como críticos do The Hollywood Reporter ;, A vida invisível tem data de estreia nos Estados Unidos (20 de dezembro), com distribuição da Amazon. O filme coloca em cena, ao longo de anos, os desencontros de irmãs que sofrem as consequências de uma visão intransigente de um patriarca.
O passado do Brasil das décadas de 1970 e 1980, a partir da figura do contraventor Tommaso Buscetta, é tema de outra coprodução (O traidor), estrelada por Pierfrancesco Favino e Maria Fernanda Cândido. Com produção sustentada por Itália, Alemanha e França, o longa tem a assinatura do politizado Marco Bellocchio, sendo o representante italiano na corrida pelo Oscar.
O tradutor, que já foi exibido em Brasília, pode, indiretamente colocar o Brasil em relevo nos prêmios da Academia, dado o fato de o concorrente cubano trazer Rodrigo Santoro como estrela. Na fita dos realizadores de origens canadense e cubana, Rodrigo e Sebastián Barriuso, Santoro vive um professor de literatura russa que vê a vida transformada ao ser deslocado como facilitador de comunicação entre crianças russas em tratamento em Cuba, depois de serem vítimas do acidente de Chernobil.
Depois de o México ver reconhecido o talento do diretor Alfonso Cuarón, no Oscar ; a partir da história de vida de uma doméstica, em Roma ;, o longa A camareira está escalado para mais um embate, visando a posição de melhor filme estrangeiro.
Na mesma linha de decifrar sofridas existências femininas, Adam (o pré-candidato marroquino), também em cartaz em Brasília, desponta como filme de Maryam Touzani. Igualmente cheio de posicionamentos radicais islâmicos, o longa da argelina Mounia Meddour Papicha traz a dedicação de uma moça à moda, com roupas que tanto podem perturbar conservadorismo.
Enquanto contrastes sociais se afirmam em filmes como o argentino A odisseia dos tontos e Parasita, ainda nas telas de Brasília, com a conjuntura machista avalizada pelo peruano Retablo (leia crítica), o circuito de cinema da cidade ainda ganha bastante do colorido e da cultura nacional com filmes (independente da possibilidade de Oscar) como Azougue Nazaré (de Tiago Melo ; confira entrevista), premiado no exterior.
Crítica // Retablo ####
Delicadeza máscula
Um filme sobre artesanato, feito aos moldes artesanais. Com representações de folclore e urdido no ciclo de tradições e preconceitos, o diretor estreante Álvaro Delgado-Aparício trata do repasse da herança da violência, em solo andino. Noé, na trama, tem tudo para ser um pai exemplar: esforçado e amoroso, toma conta do filho Segundo, parceiro na confecção de retablos, estruturas de arte que projetam bonecos (acondicionados em caixas). São vencedores de um dia a dia áspero, até que um segredo vem à tona. Pré-selecionado para concorrer ao Oscar, Retablo poderia muito bem encorpar as minguadas indicações ao prêmio para o Peru, não por acaso, rendida, há 10 anos, para a diretora Claudia Llosa (por A teta assustada) que examinava excessos contra as mulheres. Retablo mostra o açoite a homens, igualmente, fragilizados.
Duas perguntas / Tiago Melo
Como se apropriou do maracatu, no filme Azougue Nazaré?
Surgido no interior de Pernambuco, na Zona da Mata, vindo dos escravos empregados nos engenhos de açúcar ; nesta forma, falamos da vertente rural, autêntica, ainda que haja manifestação similar na África. O maracatu é uma arte de pura resistência: de imediato, foi proibido. Então, ele está resistindo até hoje. Superou a intolerância religiosa, quando, a exemplo do samba, foi marginalizado. Eu acho que nesse desmonte todo que está acontecendo na cultura do Brasil, nós artistas temos que olhar mais para as bases e justamente ver o pessoal da cultura popular, o pessoal da raiz ; eles são inspiração para a gente. Fazem o que amam, e ninguém consegue interromper.
Religião pode ser criticada nas artes?
Compreendo que as artes tenham liberdade para comentar, citar e trazer referências ao que bem entendam. Arte surge, sendo livre, sendo libertadora. Maracatu é manifestação que vem do berço de uma religião de matriz africana, contrapondo com uma nova religião que chega na cidade, que tem na figura de um ex-mestre de maracatu, sendo pastor, que tem a missão de catequizar os brincantes de maracatu. No filme eu quis levantar esse embate que acho muito importante, porque isso é um parâmetro do que acontece no Brasil de uma religião chegar e exterminar manifestações seculares, centenárias. Também acho que no Brasil isso deveria ser comentado e discutido. Sempre fui contra a intolerância religiosa de qualquer lado. Quisemos representação de espectros de igrejas neopentecostais, com alguns pastores que têm como ideal um plano de poder, de dominação, um plano político.