Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

A negritude em primeiro plano nos livros infantojuvenis

Livros infantojuvenis destacam personagens negros com o objetivo de representar e levar o debate sobre as singularidades de raça e seus questionamentos à infância

[FOTO1]
Mesmo que ainda de forma tímida, a literatura infantojuvenil tem aberto espaço para representar uma parcela da população que costuma ficar de fora do protagonismo: os negros. Nos últimos anos, cresceu o número de livros em que crianças negras fazem parte do ponto principal das tramas. Essa diversidade nas páginas é um resultado da abrangência do tema e de uma representação da realidade, já que o Brasil é um país com mais da metade da população declarada não branca, ou seja, formada por pardos e pretos, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Introduzir a representação e o debate sobre questões ligadas à negritude logo na infância é um dos fatores apontados como primordiais para a luta contra o racismo. ;As crianças não nascem com preconceitos ou juízos de valores. Elas adquirem com o tempo, repetem o comportamento das pessoas com as quais convivem e da sociedade que as cercam e, em determinado momento da infância, se tornam preconceituosas. E não estamos falando só do preconceito racial. Sabemos que os pais desempenham um papel essencial na criação de uma sociedade igualitária ao educarem os filhos para que não sejam perpetuadores de preconceitos. Na verdade, precisamos exercitar o não preconceito;, avalia a escritora Chris Donizete.

A jornalista e publisher da Soul Editora é a autora do livro MaríLia ; A menina que não sabia que era preta, obra lançada neste ano que aborda o racismo na infância por meio da história da protagonista, uma garota que sofre preconceito de uma colega por conta da cor da pele. A menina a separa dos demais amigos por ser ;pretinha;. ;O livro abrange não só discussões sobre preconceito racial, mas também que tenhamos atitudes mais respeitosas com todos. Empatia para respeitar as diferenças que encontraremos no decorrer do caminho da vida: cor da pele, estruturas genéticas (peso, altura, tipo de cabelo, etc.), nacionalidade, religião, orientação sexual;, revela.

Inspirado nas vivências

A ideia de escrever o material veio da vivência da mãe e da avó de Chris Donizete, Maria e Lia, respectivamente, daí, inclusive, vem o nome da protagonista da história, uma junção que presta homenagem às matriarcas. ;O livro nasceu do relatos delas a respeito de situações, nas quais foram muito discriminadas e maltratadas. A primeira descoberta do preconceito foi na rua de casa e, posteriormente, na escola. Claro que não faltaram momentos na adolescência, na época do namoro ou ainda quando buscavam emprego. Mas algo que marcou muito foi minha mãe se descobrindo negra, sendo atacada por outra criança. O impacto de saber que sua cor não era aceita e ela nem tinha ideia do que ainda passaria. Minha mãe é de 1945, portanto imagine quanta coisa ela não passou;, afirma a autora.

Em MaríLia ; A menina que não sabia que era preta, Chris Donizete adota uma linguagem simples, mas esclarecedora e positiva. ;Foi totalmente pensada para agradar às crianças. O formato de rima, além de facilitar a leitura, ajuda muito o aprendizado daqueles que estão em processo de alfabetização. As ilustradoras (Fabiana Costa e Gabriela Hirota) foram fundamentais para dar vida aos personagens. A ideia é de que pais e professores, ao lerem a obra para seus filhos e alunos, tenham a consciência de que o racismo existe, mas que pode e deve ser combatido. Toda hora é hora de falar sobre a dor do outro. Que pais e mães negros possam empoderar seus filhos para que saibam combater e argumentar o racismo. É inadmissível, principalmente nos dias atuais, que a cor da pele de uma pessoa possa ser essa grande barreira. As crianças pretas devem sentir orgulho de sua cor, ancestralidade, traços e isso deve se iniciar no lar, para que possam se impor diante de situações racistas. Que todos saibam que racismo é crime;, completa.

A saga de MaríLia teve início neste ano em A menina que não sabia que era preta, mas ganhará novos desdobramentos. Ao Correio, Chris Donizete adiantou que, a partir de 2020, serão lançados mais volumes: MaríLia e Caju, que abordará a amizade com um menino ruivo; MaríLia e os amiguinhos bolivianos, história ambientada em uma sala de aula sobre as barreiras culturais envolvendo alunos bolivianos; MaríLia em Minha avó virou estrelinha, sobre a perda de um ente querido; MaríLia em Não compre, adote!, com ensinamentos sobre o universo da adoção de cães e gatos; e MaríLia e os monstros, que se destrincha sobre a depressão infantil. ;Ela será a voz para aqueles que não têm. Os temas são os mais diversos, sempre voltados ao universo infantil;, acrescenta.

Novos olhares

Também foi neste ano que a professora Sinara Rúbia publicou o livro Alafiá, a princesa guerreira, pela Nia Produções Literárias. A obra nasceu da elaboração de uma monografia no curso de letras da Universidade Estácio de Sá (Unesca), em Petrópolis (RJ), iniciada após a procura ; sem sucesso ; da autora por referências na cultura negra para apresentar a filha de 3 anos. ;Comecei a procurar personagens e referenciais dentro da literatura. Entendi a escassez e praticamente ausência de personagens negros com referenciais positivos e saudáveis. Quando tinha, eram sempre estereotipados e narrados de uma outra forma a partir do racismo;, explica em entrevista à Agência Brasil.

A partir desses questionamentos, surgiu Alafiá, a princesa guerreira. Num formato de conto de fadas tradicional, o livro retrata a aventura dessa princesa negra que foi escravizada no período da colonização brasileira e se tornou numa guerreira e quilombola. A história passa lições de resistência e resiliência. Para a criação do conto de Alafiá, Sinara entrevistou meninas negras entre 5 e 12 anos que integravam o sistema público de ensino de Petrópolis, com o objetivo de fazer uma representação mais real.

Conhecido como o ;livreiro do Alemão;, Otávio Júnior é o autor de duas obras infantis em que o olhar negro e periférico são pontos-chaves. O primeiro deles é Da minha janela, com ilustrações de Vanina Starkoff e grafites do Atelier das Palavras ; Associação Meninas e Mulheres do Morro. No livro, o autor compartilha as paisagens vistas por um jovem negro da favela, desde as mazelas ; ;Da minha janela escuto sons que me deixam muito triste. Às vezes não posso ir para a escola, nem jogar bola lá fora; ; até as pequenas alegrias ; ;A nossa brincadeira preferida é microfone sem fio, que vira funk, que vira rima e se transforma em poesia;.

;Da minha janela eu vejo milhares de histórias e desejo contá-las, ouvi-las e ajudar a serem contadas. Vivo para contar histórias, sobretudo da favela, que é um mundo dentro de algumas cidades, com sua língua, costumes, cultura e tradições. Fui salvo por um livro, pois acredito na força desse objeto mágico ; e quero que a favela esteja imortalizada dentro dele;, explica o autor nas próprias páginas do livro sobre a motivação da história.

A outra obra com essa temática do autor é Grande circo favela, com ilustrações de Roberta Nunes. A história acompanha Ju, uma menina negra que se encanta com um palhaço e com a vida circense, dois elementos que ela nunca tinha tido acesso até então na periferia onde mora. A pequena ajuda o personagem a criar um picadeiro na favela, mesmo com todas as adversidades, como a falta de lona, cadeiras, pipoqueiro, baleiro e bilheteiro.


Marília ; A menina que não sabia que era preta
De Chris Donizete. Ilustrações de Fabiana Costa e Gabriela Hirota. Editora Soul, 44 páginas. Preço médio: R$ 39,90.

Alafiá, a princesa guerreira
De Sinara Rúbia. Ilustrações de Valeria Felipe. Nia Produções Literárias. Informações para compra em https://www.facebook.com/ NiaProducoesLiterarias/.

Da minha janela
De Otávio Júnior. Ilustrações de Vanina Starkoff. Companhia das Letrinhas, 48 páginas. Preço médio: R$ 34,90.

Grande circo favela
De Otávio Júnior. Ilustrações de Roberta Nunes. Estrela Cultural, 32 páginas. Preço médio: R$ 34,90.