postado em 20/10/2019 06:10
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Italiano, naturalizado dinamarquês, o ator Paolo Nani poderia ser definido como poliglota. Ele fala inglês, francês, espanhol e italiano. Apesar do domínio linguístico, é na ausência da palavra que ele se desdobra em possibilidades. Há 27 anos, o ator percorre o mundo com o espetáculo The letter. No palco, o homem escreve uma carta ; talvez aos espectadores. No lugar da escrita que falha, entra em cena a rica e múltipla expressão corporal de Nani. ;Eu, que não sou bom em falar, desenvolvi uma espécie de acrobacia do rosto, por isso que sempre fica claro, durante os 70 minutos da peça, o que estou pensando;, afirma.
[SAIBAMAIS] A peça foi criada em 1992 por Paolo Nani e Nullo Facchini, inspirada no livro Exercícios de estilo, do novelista francês Raymond Queneau. Na obra literária, não há um acontecimento especial, como explica o italiano. ;O fato se repete 99 vezes na mesma quantidade de jogos ou estilos literários;, complementa. É justamente a capacidade de variar a forma escrita como narra uma história que torna o livro de Queneau tão singular.
Assim também faz Nani nos palcos pelo mundo. Munido de ruídos, alguns gritos e muitas expressões corporais, o ator interpreta a alegria, a tristeza, a raiva, o terror, a surpresa, o medo e as várias facetas da experiência humana. Tudo isso a partir de um enredo genuíno: um homem entra no palco e se senta à mesa com a intenção de beber um líquido, aparentemente desconhecido, e escrever uma carta. Entretanto, percebe que a caneta que tem em mãos não tem tinta. A partir desse ponto, as ações se tornam complexas e, sobretudo, cômicas, à medida que o ator insiste na ação cotidiana.
De trás para frente, sem as mãos, bêbado, ao estilo faroeste ou à la Chaplin, Nani interpreta a história de maneiras completamente diferentes. Carregada de emoções e múltiplas expressões, The Letter revela a potencialidade do ator e, principalmente, o protagonismo da expressão humana.
Apesar do roteiro fixo e pré-determinado, o espetáculo funciona, nas palavras do italiano, como notas musicais. Elas flutuam e dançam conforme a cumplicidade entre ator e público, que cresce a cada momento e a cada apresentação. Com piadas originais e universais, o riso não tem brecha. Se faltam palavras em cena, sobra espaço para gestos em uma peça que alçou o monólogo ao sucesso e, mesmo tendo sido apresentado mais de mil vezes, é sempre uma novidade, para o ator e para o público.
Entrevista// Paolo Nani
Criada na década de 1990, por que a peça é tão atual?
Parece que sou bom em manter os espetáculos vivos. Acho que uma das razões está na minha mania perfeccionista. Ao longo dos anos, continuei inserindo novos detalhes e mais detalhes. E eu nunca parei, continuei a suavizar o ritmo e os maxilares. Outra razão é que a estrutura da peça é realmente uma máquina de guerra para fazer as pessoas rirem. Finalmente, há o timing. O espetáculo é fixo, mas o ritmo não, como o jazz. O que eu faço se transforma em música nova para mim. E isso se percebe. Como eu mudo, assisto a filmes, séries, shows etc., também o ritmo da peça muda comigo, mantendo-se atualizado e moderno.
Por todos os países pelos quais passou, qual audiência mais te intrigou ou marcou?
É um pouco difícil lembrar de todos os espetáculos durante os 27 anos. Não digo isso por hipocrisia, toda vez que venho à América Latina, a peça é uma festa. E, você quer saber onde eu lutei mais? No Japão. A educação do público e a extrema cortesia significavam que eles não riam alto, mas em um sussurro.
Tem alguma história ou recordação que mais te marcou?
Sou o primeiro a ficar surpreso com o sucesso que essa peça continua tendo em todo o mundo, desde 1992. Outra é que quebrei uma perna no final do espetáculo e ninguém percebeu.
Qual o maior desafio de fazer um espetáculo inteiro sem falar, só com expressão corporal?
Depende muito do talento que você tem. Para determinadas pessoas, é difícil. Para outros, é fácil. Eu, que não sou bom em falar, desenvolvi uma espécie de acrobacia do rosto, por isso que sempre fica claro, durante os 70 minutos da peça, o que estou pensando.
Não é cansativo apresentar a mesma peça tantas vezes?
Não. Exatamente porque, para mim, é sempre uma música nova. Se você vir a peça mais de uma vez, verá as pequenas variações que eu inventei a cada apresentação.
Tem vontade de fazer algo que não seja o cômico? O cômico é mais difícil?
The letter é apenas um dos espetáculos que tenho no repertório. Eu também tenho Jekyll on ice e El arte de morir. O último, no qual somos dois atores no palco, é, ao mesmo tempo, uma comédia e um drama. Também acho importante cultivar a parte cômica e a dramática de um ator. Todos os grandes comediantes foram ou são atores dramáticos: Chaplin, Keaton, Jerry Lewis, Jim Carrey, Robin Williams, etc.
Qual emoção mais te representa? Qual a mais difícil de interpretar?
Como disse, como ator, você precisa conhecer todas as suas cores. Do mais cômico ao mais dramático. Às vezes, alguém diz que The letter é uma espécie de aula de teatro. É certo. No final, toquei em todas as cores.
O espetáculo nos ensina a ver uma história sob outro ângulo?
Na peça, uma cena é apresentada em diferentes variações da mesma história. Então, sim, pode-se dizer que é como você diz. E quando você sabe que a mesma cena é apresentada no estilo de terror, cinema mudo, sem mãos, circense, também quero ver a vida assim.
The Letter
No Teatro da Caixa Cultural Brasília. Neste domingo (20/10) às 19h. Com Paolo Nani. Ingressos: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia-entrada). Não recomendado para menores de 10 anos.