A cena parece se repetir. De um lado, a ansiedade e a expectativa de famílias e pacientes que lutam por respostas. Do outro, burocracias, dúvidas e adiamento de decisões. Há cinco anos, a sociedade brasileira descobria a batalha da pequena Anny Fischer, então com 5 anos, contra crises convulsivas diárias e acompanhava o empenho dos pais, Katiele e Norberto, para legalizar o único tratamento que encontraram que reduzia significativamente as convulsões e proporcionava qualidade de vida à filha: o CBD, o canabidiol, uma das substâncias derivadas da Cannabis.
A história dos Fischer, assim como de outras famílias do Brasil, que enfrentavam o preconceito e a burocracia do Estado para usar legalmente as substâncias que ajudam a aliviar dores crônicas ou crises epilépticas, ganhou as telas de cinema pelo olhar do diretor Tarso Araújo e do cineasta Raphael Erichsen. Este mês, o documentário Ilegal completa cinco anos. Enquanto os personagens da vida real se reúnem para celebrar as conquistas e discutir o que ainda precisa ser feito, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) repete as cenas do longa: a instituição adiou a votação a respeito da liberação do cultivo de maconha para fins medicinais no país.
;Nada nunca vai ser fácil;, reconhece Norberto Fischer. Discutir sobre maconha medicinal ainda enfrenta entraves no Brasil. Contudo, o pai de Anny considera que neste período alguns destaques positivos precisam ser reconhecidos. ;Principalmente na própria Anvisa. Sentimos que ela está empenhada. Também hoje, que temos um governo de direita, bem radical, mas tem sido favorável ao uso medicinal;, comenta. A liberação para o cultivo da planta ainda é um calo, sobretudo, para determinados líderes que associam a liberação da produção com o uso recreativo. ;Chega a ser uma argumentação hipócrita e infantil;, avalia Fischer. ;Existe a possibilidade de plantar sem correr riscos, sem trazer mal para o Brasil;, acrescenta.
Para ele, pela primeira vez, a maconha medicinal conseguiu convergir vozes até então divergentes. ;Lá atrás, mal se ouvia falar sobre isso. Hoje, tem bancas em universidades sobre o assunto, debates em escolas, nas famílias;, conta. Até os grupos religiosos, vistos sempre como uma força contrária, já começam a apoiar a causa. Ações e projetos envolvendo o tema também ganharam força. ;Políticos que eram favoráveis de forma bastante tímida agora, estão aparecendo. A senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP) falou com todas as letras que usa o óleo de maneira ilegal. Isso não existiria;, pontua Fischer.
Entre tantas razões para celebrar, contudo, talvez nenhuma delas equivale à alegria na voz de um pai que celebra o crescimento da filha. Não importa se são pequenas vitórias. Agora, aos 11 anos, Anny ainda tem dificuldades para andar e se comunicar. Entretanto, ganhou novo brilho desde que iniciou o tratamento com o CBD. ;Com certeza ela não estaria mais entre nós;, afirma o pai. ;Se o filme fosse hoje, ainda chamaria Ilegal, porque ainda existe muita ilegalidade como solução. Os avanços adquiridos foram fantásticos, mas a distância a percorrer ainda é muito grande. Ele foi muito importante, pois pessoas anônimas da sociedade, do Brasil inteiro, começaram a ganhar voz e protagonismo;, destaca.
A dor dos outros
;Se, por um lado, a população está bastante consciente da utilidade da Cannabis medicinal e apoia a regulamentação, a Anvisa, por outro, produziu muito pouco em cinco anos, e o Poder Executivo está fazendo tudo o que pode para impedir o acesso ao tratamento;, avalia Tarso Araújo. Quando ele e Raphael Erichsen iniciaram as gravações do filme, eles deram visibilidade e espaço para um debate e a organização de um movimento de mães e pacientes que, hoje, se intensificou em prol do uso medicinal.
Naquela época, os olhos se arregalaram para personagens que afirmavam diante das câmeras que importavam ilegalmente o CBD. ;Hoje, o que a gente está vendo é que as pessoas não suportam a condição cara e restritiva da Anvisa. Poucas pessoas podem ter acesso ao medicamento. A revolução que tem acontecido hoje é das pessoas que decidiram, digamos assim, fazer justiça com as próprias mãos. Estão plantando, entrando na Justiça para o Estado pagar, para ter autorização na Justiça para plantar. Estão tentando se virar na medida que o Estado não faz nada por elas;, comenta Araújo. Nesse sentido, o filme continua atual. ;Ilegal mostra toda a luta daquelas mães contra um Estado inoperante. As pessoas não estão pedindo nada demais, estão pedindo que o direito à saúde seja atendido;, pontua.
Caso a Anvisa não regulamente o plantio que, para Tarso e Norberto, influencia diretamente de maneira social, econômica e científica no país, o que se verá é um aumento na demanda de judicialização de casos. ;Tanto de pessoas físicas quanto jurídicas, porque muitas ONGs se formaram para fornecer o tratamento para os pacientes;, comenta Araújo. Além disso, a falta da regulamentação recai em um contexto de insegurança de médicos e pacientes.
;É uma pena, em vez de a gente ter avançado no debate, tenho a sensação que andamos para trás com a intervenção criminosa de notícias falsas por parte de autoridades, que não têm argumentos e apelam para a desinformação;, lamenta Tarso. Ilegal não terá uma continuação. Contudo, o diretor lançou, em junho, um novo curta, A dor dos outros, sobre pacientes com dor crônica que encontraram no uso da maconha medicinal uma última alternativa de esperança. Afinal, a vida não espera.
Convulsões
Ilegal conta a história de Anny, portadora da síndrome CDKL5 ; como problemas de desenvolvimento, perda de habilidades na fala, movimentos repetitivos das mãos. Por conta do diagnóstico, ela sofria, em média, 60 convulsões por semana antes do início do tratamento com o canabidiol. Além dela, o documentário relata a história de outros pacientes que usam substâncias derivadas da maconha medicinal para tratar dores crônicas e crises epilépticas.