Nahima Maciel
postado em 09/10/2019 07:00
Há vários descompassos no mundo das artes quando se trata do gênero feminino. E boa parte deles reflete uma realidade social. Há muito a artista Clarice Gonçalves observa e estuda a questão, que acabou por ganhar uma dimensão importante em suas pinturas. Quando engravidou de Hector, há mais de seis anos, Clarice passou a se questionar sobre o impacto da maternidade na produção artística. O tema é a questão central de Matriz, em cartaz no Museu Nacional da República e com curadoria de Cinara Barbosa.
São sete anos de produção e mais de 20 pinturas nas quais a artista aborda o tema de uma maternidade nada romantizada e do lugar da mulher no circuito das artes visuais. ;Essa exposição, para mim, tem esse lugar de se reinventar, olhar o que sobrou e refletir sobre como voltar para o meio, como quebrar a maldição de artista depois que vira mãe;, revela. ;Porque é uma maldição que se autocumpre, os colecionadores param de comprar, porque muita gente compra por questão de investimento e, com a maternidade, que é um lugar de desafio, não se sabe o que vai sobrar da pessoa. O que acontece é que a maioria das mulheres acaba tendo que largar e mudar de profissão. Não há suporte paras as mães e não se cobra nada dos pais.;
Clarice conta que, ao longo dos últimos sete anos, produziu trabalhos muito eloquentes nesse sentido, mas ela e a curadora optaram pelo que chamam de ;uma seleção mais convidativa, menos combativa;. ;Por causa do momento que o país vive;, diz. ;Estamos pensando mais nesse lugar de convidar à reflexão.; Nas telas, imagens de corpos femininos e recortes de gestos que remetem a sensações dão o tom das composições e convidam a interpretações relacionadas a questões como amamentação, contato com o corpo, medo, solidão e trabalho doméstico. ;Coisas invisíveis que abatem as mulheres, especialmente as mães;, aponta a artista.
Oficinas
Clarice também abriu espaço, nesse projeto, para um coletivo de 10 mães apresentarem o resultado de oficinas ministradas no anexo do Museu Nacional. As artistas foram selecionadas após uma chamada e, no ateliê, uma brinquedoteca recebia os filhos para que as mães pudessem focar na produção. Durante a orientação, feita por Clarice e Cinara, as artistas conversaram sobre a maternidade sob um aspecto não romantizado. As obras ; pinturas, objetos, vídeos e instalações ; serão mostradas em um espaço contíguo à exposição de Clarice. ;Foi um processo muito rico, estou retomando esse lugar de criação, não só no sentido de criar um ser humano, mas de arte. A gente acabou tendo muitos temas em comum, como se todas as questões que elas viessem apresentando também refletissem em questões minhas. Rolou essa sincronia fluindo por alguns temas e isso está bem visível na exposição. Coisas como dar conta das dificuldades de ser mãe nesse sistema que não acolhe as mães, não acolhe as crianças e passa a mão na cabeça de pai ausente;, diz a artista.
Clarice também traz para a exposição algumas experiências novas na pintura. Restos de materiais do ateliê foram incorporados, além de peças de crochê adicionados à tela. ;São os restos da pintura, os meus restos, o que sobrou de mim depois da experiência da maternidade;, repara. A curadora Cinara Barbosa define essas experimentações como telas-objetos. ;Também estamos apostando numa outra apresentação do trabalho dela, que tem algumas disposições instalativas. Não chega a ser uma instalação, mas a gente coloca os materiais diretamente na parede;, avisa a curadora, que também escolheu alguns escritos da artista sobre a experiência da maternidade para serem apresentados durante a mostra.
Matriz
Exposição de Clarice Gonçalves e Coletivo Matriz, com Adriane Oliveira, Aila Beatriz, Angélica Nunes, Bárbara Moreira, Camila Melo, Carolina de Souza, Débora Mazloum, Marta Mencarini, Raissa Miah, Tatiana Reis. Visitação até 7 de novembro, de terça a domingo, das 9h às 18h30 no Museu Nacional da República (Setor Cultural Sul, próximo à Rodoviária do Plano Piloto).