;Alguma coisa aconteceu comigo. Alguma coisa tão estranha que ainda não aprendi o jeito de falar claramente sobre ela. Quando souber finalmente o que foi, essa coisa estranha, saberei também esse jeito. Então serei claro, prometo. Para você, para mim mesmo. Como sempre tentei ser. Mas por enquanto, e por favor, tente entender o que tento dizer. (...) Dói muito, mas eu não vou parar. A minha não desistência é o que de melhor posso oferecer a você e a mim neste momento. Pois isso, saiba, isso que poderá me matar, eu sei, é a única coisa que poderá me salvar. Um dia entenderemos talvez.;
Era 1994, e o escritor gaúcho Caio Fernando Abreu escrevia a primeira de uma série de quatro crônicas publicadas no jornal O Estado de S. Paulo sobre a infecção do HIV/Aids. Intitulados Primeira, segunda, última e mais uma carta para além dos muros, os textos contam, em estágios e com um diálogo direto com o leitor, a angústia e o sofrimento do diagnóstico da doença, o cotidiano no hospital e as reflexões do paciente.
Mais de 20 anos depois, o diretor André Canto toma a liberdade de pegar emprestado um dos títulos para lançar um documentário em cartaz na cidade. Além de uma homenagem a Caio Fernando, Carta para além dos muros traça a trajetória histórica do vírus HIV e da Aids no imaginário brasileiro, desde a epidemia que tomou o mundo e deixou milhares de vítimas nas décadas de 1980 e 1990 até os dias atuais. ;Passados tantos anos, era necessário escrever essa nova carta. Muita coisa mudou, mas, infelizmente, continuamos pensando muito parecido;, comenta Canto.
Mesclando notícias da época, manchetes de jornal, entrevistas com médicos, pessoas que vivem com o vírus, ministros da Saúde e representantes de movimentos conscientizadores sobre a epidemia, o diretor reflete sobre a evolução do tratamento e lança um olhar questionador, resumido na fala da infectologista Márcia Rachid: ;Falar de HIV hoje tem o mesmo mistério de 35 anos atrás. Não pode! Aí vem a história de ;Precisamos falar disso;.
As cenas do documentário, com depoimentos do médico Drauzio Varella e do brasiliense, ator, youtuber e ativista do projeto Boa Sorte, Gabriel Estrela, foram gravadas em um estúdio. Com uma enorme parede cinza, o local tem apenas uma porta vermelha, que está aberta e permite ver a movimentação da rua. ;Sinto que a gente faz esse debate dentro de uma sala e temos que sair da sala e fazer o debate na rua. Falamos baixo, temos medo. O meu convite é para falarmos com tranquilidade, com leveza, mas na rua, no ambiente social;, explica o diretor.
Para ultrapassar essa fronteira, além de exibir o filme nas salas de cinema, Canto participa nesta quarta-feira, em Brasília, de um bate-papo com alguns membros da Frente Parlamentar Nacional em HIV e Aids, da Câmara dos Deputados. Logo em seguida, todos vão assistir a uma sessão do documentário. ;É muito importante tratarmos essa discussão com o poder público, justamente por acreditar que enquanto não houver uma política pública efetiva em relação ao HIV e à Aids e não só na distribuição de medicamentos, a gente não vai conseguir avançar;, afirma.
Quatro perguntas // André Canto
Por que decidiu produzir filme com esse tema?
Começou a partir de um medo, de um pânico muito individual. Desde que comecei a descobrir minha sexualidade, durante a juventude e idade adulta, tinha um medo inconsciente, pelo simples fato de ser gay, de ter Aids e morrer disso, viver esse terror todo. Isso porque eu não sou da geração que viveu a epidemia letal. Tenho 35 anos. Tem geração que viveu o inferno e a geração do fantasma. Aos poucos fui percebendo que ninguém gostava de falar sobre o assunto, mas quando a gente falava, esse medo estava na fala de quase todos. O HIV e a Aids falam de coisas muito profundas, não só do universo individual, mas do social. Ainda morrem pessoas em decorrência da Aids. É um sinal de fracasso. Com o tratamento que temos, não era para ninguém desenvolver esse quadro. Desse medo e desse pânico individuais, fui percebendo que era uma questão social. A medicina resolveu questões do tratamento e da prevenção, o que ficou foi um vírus social, uma doença social.
Qual o impacto e a relevância de se lançar o filme hoje?
Lançar o filme hoje é diferente. A gente sempre diz que, em relação aos medicamentos, o Brasil distribui gratuitamente o medicamento mais avançado no tratamento do HIV, que promete não trazer efeitos colaterais. Porém uma política de HIV e Aids não pode ser feita só do ponto de vista biomédico, tem que ser pensada também pela questão social e da informação.
Você pretende levar o filme para escolas e outras instituições de ensino? Quais os planos?
Estamos recebendo uma enxurrada de mensagens de professores, tanto do ensino médio como universitário, e de pessoas que trabalham no sistema prisional. A gente já tinha a ideia de levar o documentário para outros lugares, mas não imaginava que a reação seria tão forte. É uma ferramenta importante nessa discussão. Agora, vamos começar a organizar para exibir na tevê aberta ou fechada e também queremos seguir nessa campanha #PrecisamosFalarSobreDisso e trazer uma série no fim do semestre do ano que vem. São muitos assuntos, o sistema prisional é um deles, a forma como as pessoas que vivem com HIV e Aids privadas de liberdade é desumana. No filme, optamos por um recorte, não tem tempo para isso, de ampliar todos os debates, mas a série vem para isso.
O que mudou de 30 anos para cá ; quando foi identificado o primeiro caso ; e o que não mudou?
O que mudou, efetivamente, é a questão médica. Hoje, viver com HIV é simples. As pessoas ficam bravas quando bato nessa tecla, por terem tido uma experiência negativa, e eu respeito isso, é uma dificuldade legítima, mas eu tenho que repetir, porque acho que aí está uma das chaves para enfrentar a epidemia, é simples e saber a realidade pode ajudar no enfrentamento. E o que menos evoluiu são o estigma e o preconceito. Eles nunca deveriam ter existido. Antes estavam colados a uma doença mortífera, agora é uma paranoia social, não faz o menor sentido deles existirem.
Confira o trailer oficial do filme:
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