Adriana Izel
postado em 01/10/2019 06:31
;É som de preto, de favelado, mas quando toca ninguém fica parado;. O verso cantado por Amilcka e Chocolate no hit Som de preto é uma das melhores definições para explicar o movimento funk, ritmo que, neste ano, completa 30 anos se mantendo no topo das paradas e tendo projeção nacional e internacional, ao mesmo tempo em que continua a receber críticas e sofrer perseguições.
O marco do surgimento do gênero no Brasil é setembro de 1989, quando foi lançado o LP Funk Brasil, do DJ Marlboro, pela Poligram. No entanto, a semente do funk, como um gênero genuinamente brasileiro, foi plantada nos anos 1970, quando nasceram os bailes na Zona Sul carioca inspirados no funk norte-americano de nomes como James Brown e Miles Davis. ;O Marlboro foi importante porque foi o primeiro DJ que teve recursos de uma gravadora para fazer um disco com funk cantado em português, neste LP de 1989. Mas os primeiros passos do movimento funk se deram nos anos 1970, com o movimento black, que fazia festa para ouvir o funk norte-americana, e, por isso, o ritmo brasileiro ficou com esse nome porque começou a ser tocado nos bailes que ali nasceram;, analisa Lucas Reginato, autor do livro Funk: A batida eletrônica dos bailes cariocas que conquistou o Brasil em parceria com Júlia Bezerra.
Naquela época, os DJs tocavam músicas instrumentais ou ainda versões em português de canções consagradas do movimento estadunidense. A cena foi estudada pelo antropólogo e pesquisador musical Hermano Vianna, que, em 1977, fez uma dissertação de mestrado sobre o tema que deu origem ao livro O baile funk carioca: Festas e estilos de vida metropolitana (obra esgotada, mas disponibilizada pelo autor para download em www.overmundo.com.br).
Também foi Vianna que, indiretamente, ajudou no nascimento do funk brasileiro. Velho conhecido de Fernando Luís Mattos da Matta, o DJ Marlboro, ele deu ao produtor uma bateria elétrica. O instrumento foi primordial para que Marlboro começasse a fazer experimentações até chegar à fórmula do funk. Nessas experimentações, Marlboro teve a ideia. ;Fui fazendo experiências até que achei a fórmula;, conta ao Correio. "A música não podia ser falada (como o rap), tinha que ser cantada, pois somos um povo melódico. Depois, vi que tinha que ser uma música sem reclamação. Eu tinha uma fórmula: uma música descontraída, sem compromisso de estar reclamando da vida e melódica;, completa.
Início e evolução
Uma das primeiras faixas a ser feita foi o Melô da mulher feia, versão de Do wah diddy diddy (1964), de Manfred Mann. Na época, o DJ achou que nenhuma gravadora fosse abraçar a proposta; então passou a produzir sozinho. Convidou os dançarinos dos bailes para cantar. Foi um dos primeiros ;não; que ouviu. Até que fez com MC Batata o Melô do bêbado e engrenou na procura de mais MCs.
Logo em seguida veio MC Guto, pagodeiro que não estava indo bem no ritmo originário, com ele gravou Melô do bicho. Cidinho Cambalhota foi outro nome que Marlboro convidou. ;Ele fundou o Baile da Pesada (juntamente com Ademir Lemos, que também está no LP com Rap do arrastão) na década de 1960, quando a música mecânica estava escondida no Rio de Janeiro. Fui e o convidei para participar, porque não acreditava que meu ídolo do movimento estava passando dificuldade;, completa ao dizer que o artista gravou o Rock das aranhas.
Assim surgiu Funk Brasil, o primeiro disco de funk do país e marco zero do nascimento do estilo musical. Marlboro gravou quatro faixas, sendo sete delas em parceria e apenas a faixa final, o Marlboro medley, sozinho. Mesmo com apoio de uma gravadora, o CD não teve verba para lançamento. O que não foi um problema, já que o disco vendeu mais de 20 mil cópias logo no lançamento. Em seguida, bateu mais de 100 mil discos. Hoje, estima-se que foram comercializados mais de 250 mil cópias.
O sucesso deflagrou a criação do Funk Brasil 2 e o lançamento dos MCs em carreiras solo. Dois anos depois, o funk Feira de Acari, de MC Batata, atingiu um novo patamar: se tornou trilha sonora da novela Barriga de aluguel. A partir daí, o funk foi ganhando mais destaque. Em 1994, Marlboro passou a integrar o elenco do programa da Xuxa. No mesmo período, Claudinho & Buchecha se lançaram no mercado introduzindo o funk melody, assim como Cidinho & Doca que estouraram com o Rap da felicidade.
O ritmo evoluiu mais uma vez chegando ao chamado ;tamborzão; e nos anos 2000 se projetou, principalmente, com a Furacão 2000. Depois houve a maior presença feminina com nomes como Tati Quebra Barraco e Deize Tigrona mudando o discurso e dando voz às mulheres. Em 2010, a periferia paulista passou a criar o próprio estilo, o funk ostentação. Em 2012, veio o boom de Anitta com Show das poderosas e a popularização do funk ao se aproximar de outros estilos musicais mais comerciais. ;A batida do funk passou por vários períodos diferentes, que acompanham as influências e possibilidades técnicas de cada momento", explica Lucas Reginato.
Hoje, o ritmo que dita a ordem e é tendência do funk é o 150 BPM, uma batida mais acelerada que surgiu por nomes como Polyvax e Rennan da Penha que introduziram o estilo nos bailes da Holanda e da Gaiola, respectivamente.
Sucesso e perseguição
Ao longo dos 30 anos, o funk viveu diferentes momentos de auge. Esse sucesso do estilo musical no Brasil se deve por retratar exatamente parte da população brasileira. ;Quando você fala de funk, você fala da favela, onde ele foi criado. De cada 10 casas, sete estão produzindo músicas. São canções que saem de um quartinho, que, às vezes, foram gravadas num fone de ouvido e viram sucesso no mundo. O funk é inspiração para muita gente. É o começo de tudo: veja a Anitta que começou no funk e hoje canta vários estilos. Outro exemplo é a Ludmilla. O funk é o ritmo que fala a verdade. Todo funkeiro, MC e DJ quer botar sua verdade, o que ele sentiu, o que ele passou na música;, afirma DJ Iasmin Turbininha, uma das sensações do 150 BPM.
O forte teor social é outro ponto que DJ Marlboro destaca do movimento. ;O funk é muito o dia a dia. Ele dá oportunidade aos excluídos, tem todo um papel importante social;, comenta. De acordo com o especialista Lucas Reginato, a ascensão do ritmo tem a ver ainda com a mensagem, a sonoridade e a simplicidade de concepção: ;O funk é popular porque a linguagem é acessível, e o ritmo é contagiante. O funk é música eletrônica, feita no computador, ninguém precisa aprender a tocar um instrumento e alugar um estúdio de gravação. Por isso, é mais barato de se produzir também. No mundo inteiro, os ritmos mais populares hoje em dia são eletrônicos, como o hip-hop, o reggaeton, o technobrega, etc;.
Mesmo dominando as paradas, o funk continua a sofrer preconceito. As críticas em sua maioria são voltadas ao conteúdo. Em 2017, o Congresso Nacional chegou a discutir a criminalização do funk. Neste ano, uma nova polêmica surgiu com a prisão do DJ Rennan da Penha, que, foi acusado de associação ao tráfico por comandar o Baile da Gaiola. Para especialistas e integrantes do funk, as críticas do estilo musical revelam um preconceito com a origem do ritmo. ;O funk sempre vai ser criticado por ser da favela. E ele sempre vai ser da favela; então, essa discriminação vai acontecer. Mas, se depender de mim, o funk nunca vai acabar. Vai só prosperar. As pessoas não entendem o que o funk faz pelos favelados, pelo povo. Você hoje vê a meninada querendo virar DJ. Ele pode estar produzindo funk hoje e amanhã ser DJ de um grande artista;, comenta Iasmin.
;O funk é perseguido porque é uma expressão do Brasil de verdade, do Brasil que é negro e mora na favela. As críticas quanto à qualidade do funk quase sempre são elitistas, porque comparam a obra a um padrão que o artista nunca considerou ;, afirma Lucas Reginato.
E completa: ;Como aconteceu com o samba, no começo do século passado, a perseguição é inclusive criminal, porque a justiça também é preconceituosa. O artista mais influente do funk nos últimos anos está preso, porque supostamente tinha relação com o tráfico enquanto fazia sucesso como DJ. Os desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro não consideraram a hipótese de ele se relacionar com aquelas pessoas porque eram vizinhos e amigos de infância. Nem levaram em conta que um artista de sucesso, com música no Domingão do Faustão, não precisa vender droga pra ganhar dinheiro;.
Projeção
Um ritmo em constante mudança, o que se pode esperar e projetar em relação ao funk 30 após o lançamento? Para o DJ Marlboro, uma ode ao estilo. Desde 2017, ele lança o Funk Brasil Relíquias, projeto em sete volumes, em que celebra o funk do passado e o aproxima das tendências atuais. ;As pessoas têm que enxergar que o funk tem que ser feito com qualidade e responsabilidade para ter longevidade. Nunca fiz música para classe social. Fiz para várias. Assim o funk agrada mais pessoas;, afirma.
A DJ Iasmin Turbininha tem apostado no brega funk e no 170 BPM. ;O funk sempre vai mudar. Estou lançando um projeto brega funk, um ritmo que muitas pessoas estão gostando. Daqui a 10 anos, o funk ainda vai revelar muitos artistas. Pode esperar que o funk, como o samba antigamente, vai conquistar seu espaço. Espero o dia que seja reconhecido como uma cultura;, sonha.
Três perguntas / Lucas Reginato
O que te motivou lá atrás a estudar e fazer um livro sobre o funk?
Estudar a história da música popular no nosso país é estudar a história da formação da nossa sociedade. Depois de pesquisar e escrever sobre o nascimento da MPB (no livro Fino da Bossa) eu busquei um movimento que fosse menos de um ou outro artista privilegiado, e mais de uma coletividade caótica e criativa que existe na periferia. O funk é uma expressão espontânea e genuína, uma representação que está viva, porque desde que nasceu até agora continua mudando e acompanhando o mundo que muda em volta. O que me motivou foi que nenhum outro objeto de pesquisa pode ser tão rico e dançante ao mesmo tempo.
O funk é muito relacionado ao Rio, mas também tem tido espaço em São Paulo nos últimos anos. Em seus estudos, pôde identificar outros estados em que há uma predominância do estilo?
Meus estudos foram mais na história do funk, e aí é clara a origem no Rio de Janeiro, mas foi interessante perceber como ele foi gradualmente avançando geograficamente. Antes de conquistar a região metropolitana de São Paulo, por exemplo, o funk ganhou a Baixada Santista, nos anos 1990. Hoje em dia, o funk é mais brasileiro do que carioca, e cada região faz funk com sotaque próprio. O funk ostentação, por exemplo, foi um movimento do funk paulista. Os produtores de Minas Gerais hoje desenvolveram um estilo peculiar, com batidas minimalistas. Já em outros estados, o funk abraça ritmos regionais, como o brega, no Pará, e o pagode da Bahia.
Quais são os artistas que fizeram história no gênero?
O funk é mais a história de uma massa criativa do que de um ou outro artista dotado de inspiração divina. São gerações de milhares de jovens de periferia que fizeram sucesso nas mais variadas maneiras, os DJs, os dançarinos, os mestres de cerimônia, as equipes de som. Um nome que eu gosto de destacar é de Tati Quebra Barraco, uma mulher que participou da geração do tamborzão, cria da Cidade de Deus, na virada do século. Ela cantava de um jeito completamente inusitado, e a voz forte dela dizia coisas que na boca de uma mulher eram ainda mais revolucionárias, libertárias mesmo. Fez muito sucesso, mas nunca deixou de seguir seu estilo. Por fim, me sinto obrigado a mencionar o DJ Rennan da Penha, porque, a meu ver, ele está preso injustamente, desde abril deste ano. No auge da carreira, a Justiça o condenou por associação ao tráfico porque ele fazia baile funk na favela. O Rennan foi o principal responsável pela grande renovação estética do funk nos últimos anos, o funk de 150 BPM, que alavancou a carreira do Kevin O Chris, entre outros MCs. A história do Rennan é a história do funk.