Mais de 60 anos depois, a artista busca referência no fato para explicar o Brasil, que é cantado no mais recente álbum, Planeta fome, lançado no último dia 13. ;É porque a gente está com muita fome;, diz Elza ao Correio ao explicar o motivo da escolha do título. ;Estou com fome de saúde, de respeito, de cultura. Estamos vivendo um momento de saudade. O Brasil, que é um país tão acolhedor, hoje está encolhido. Eu não entendo isso. Então, estamos vivendo um momento de muita fome;, diz.
[SAIBAMAIS]A partir dessa fome, a cantora buscou o repertório de 12 faixas, que é formado por canções inéditas e algumas regravações. ;O repertório é todo meu. Escolhi a dedo. As músicas são todas atualizadas com o hoje. Elas são feitas para o hoje. Até aquelas que foram feitas ontem, elas podem ser cantadas hoje. Minha preocupação era essa. Encontrar músicas que relatassem o hoje, não me importava muito quando elas tinham sido feitas;. Assim chegou até clássicos como Comportamento geral ; a primeira do CD a ganhar um clipe lançado na última quinta-feira em que Elza está num cenário apocalíptico ao melhor estilo do filme Mad Max ; e Pequena memória pra um tempo sem memória, ambas de Gonzaguinha, e Tradição, de Sergio Britto e Paulo Miklos, dos Titãs, que ganharam nova roupagem e a marcante voz de Elza Soares.
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Entre as inéditas, todas canções que são a cara da artista, com um discurso forte, social e político e, ao mesmo tempo, otimista. Para mostrar isso, Elza começa o álbum com Libertação, escrita por Russo Passapusso, do BaianaSystem, e com participação de Virginia Rodrigues, em que manda logo o recado: ;Eu não vou sucumbir/ Eu não vou sucumbir/ Avisa na hora que tremer o chão/ Amiga é agora segura a minha mão;. Depois logo emenda a curtinha, de apenas 46 segundos, Menino, um recado as crianças: ;Sei que é muito triste não ter casa, não ter pão/ Não te leva a nada destruir seu irmão/ Você representa o futuro da nação.;
A terceira faixa é Brasis, música que, segundo Elza, define exatamente o Brasil atual e o tom do disco. ;O Brasil que eu vejo é esse do Brasis que estou cantando. É o Brasil ao contrário. Parece que são dois Brasis num Brasil só;, analisa. Na canção escrita por Seu Jorge, Gabriel Moura e Jovi Joviniano, a artista mostra o Brasil de contradições, que ao mesmo tempo que é próspero, também não o é. As terras tupiniquins são ainda tema de Blá blá blá (Gabriel Contino, DJ Meme e Andre Gomes), com BNegão e Pedro Loureiro, e que faz referências a discursos atuais como o ;terraplanismo;, e País do sonho (Chapinha da Vela e Carlinho Palhano), que mostra a busca da cantora por um país com saúde, educação e sem corrupção.
Em ambas, Elza toca na ferida, mas se mostra otimista, algo que ela diz ser essencial no momento vivido, e faz questão de reforçar em Planeta fome. ;Lógico, temos que ser otimistas. Falei outro dia que o Brasil está vivendo um momento de gripe. Está gripado, e a medicação é o povo. Temos que dar esse remedinho logo para não deixar virar uma pneumonia. É só uma gripe. Eu preciso cantar num país onde a saúde não esteja doente;, afirma, citando trecho de País de sonho.
Discurso
Em Planeta fome, a artista volta a se referenciar, aqui de forma atualizada. Elza Soares renova o discurso de A carne, no disco Do cóccix até o pescoço de 2002, em Não tá mais de graça, composta por Rafael Mike, que também divide os vocais com a cantora. ;Há 17 anos cantei que a carne negra era a mais barata. Hoje não é mais. Hoje o que não valia nada, agora vale uma tonelada;, diz.
Em Virei o jogo (Pedro Luis), a artista faz o que fez muito bem em Deus é mulher (2018), canta uma espécie de biografia feminista. ;Nunca arreguei/ Quando tropecei sempre me ergui/ Já quebrei a cara/ Enfrentei as feras, nunca me rendi;. Já em Não recomendado, de Caio Prado, Elza fala do preconceito e do aumento do conservadorismo: ;A placa de censura no meu rosto diz, não recomendado a sociedade;.
No meio de tantos discursos há um momento para leveza, que ocorre no meio do disco em Lírio rosa. Escrita por Pedro Loureiro e Luciano Mello, a faixa é romântica e está em Planeta fome exatamente para um momento de quebra. ;Ela te dá uma descansada. É aquela coisa bem branda, uma coisa linda, maravilhosa;, classifica.
Diferentemente de A mulher do fim do mundo (2015) e Deus é mulher (2018), que tiveram produção de Guilherme Kastrup, Planeta fome, 34; disco da carreira, contou com produção de Rafael Ramos, que já havia trabalhado com Pitty, Titãs, Ultraje a Rigor e Capital Inicial. Isso faz com que o material tenha algumas diferenças. Além da mensagem, aqui mais política e social, há uma sonoridade mais percussiva, também influência da presença do BaianaSystem, batidas eletrônicas e guitarras sujas. ;A gente deu sorte. Dei muita sorte. Calhou e aconteceu que deu tudo certo. Trabalhar com o Rafael Ramos foi muito bom. Ele é maravilhoso;, defende.
Outra novidade é a arte da cartunista Laerte na capa de Planeta fome. A ilustração é surrealista e traz a imagem de um planeta populoso, poluído e com referências às origens da cantora, nascida e criada no subúrbio do Rio de Janeiro.
Assim como em Deus é mulher, Elza Soares sairá logo em turnê do disco. O primeiro show será no Rock in Rio, onde será homenageada em 29 de setembro no Palco Sunset na apresentação intitulada Elza Soares convida com As Bahias e a Cozinha Mineira, Kell Smith e Jéssica Ellen. Depois, a cantora deve rodar o Brasil.
Planeta fome
De Elza Soares. Deck, 12 músicas. Disponível nas plataformas digitais.