Devana Babu*
postado em 17/09/2019 06:15
A atriz Nininha Alburquerque, do Grupo Liquidificador, estava com o braço engessado. Mas nem por isso as sessões do espetáculo A resistível ascensão de Arturo Ui, apresentadas nos dois últimos fins de semana no Espaço Cultural Renato Russo, foram canceladas. Pelo contrário, desde a estreia, a atriz aproveitou o inconveniente a seu favor para usá-lo como artifício cênico. Ao dar vida ao drag king Little Big, que interpreta o personagem Jivola, um mafioso meio serial killer, a atriz usou o gesso como se fosse uma metralhadora.
Baseado em um texto de Bertolt Brecht dos anos 1940, o espetáculo do Grupo Liquidificador satiriza o Brasil moderno da mesma forma que o texto original parodiava a ascensão de Hitler ao poder, colocando personagens do universo gangster de Chicago em cena. Ao todo, o roteiro original tinha 29 personagens e, se fosse seguido à risca, a montagem teria quase três horas de duração. O Liquidificador queria muito encenar este texto, então realizou cortes drásticos, mas cirúrgicos.
;A gente nunca tinha feito uma adaptação, e surgiu esse desejo. Lemos vários textos, mas quando a gente leu esse, ;bateu; pra todo mundo;, explica a atriz Fernanda Alpino, fundadora da companhia. ;É um texto muito político, que vai falar da ascensão desse gangster (Arturo Ui) ao poder, uma luta destes homens poderosos tentando trazer os valores de uma moral tradicional. O texto pareceu muito urgente, não só no Brasil como no mundo;, justifica a atriz.
Para trazer a peça para uma dinâmica atual, cortes se fizeram necessários. ;A gente quis muito se apegar à história, e mantivemos a maioria das cenas, como elas são, só que reduzidas, com cortes e simplificações, porque queríamos trazê-la de uma maneira que pudesse ser compreendida com facilidade. Os detalhes estão lá, mas a história é muito complexa. A gente queria reduzir o tempo e trazer coisas nossas.;, explica a atriz.
Diante dos ;cortes;, da ;escassez de mão de obra; da companhia, cuja formação atual conta com quatro atrizes e um diretor, as atrizes tiveram que colocar sua versatilidade à prova e se desdobrar em muitas para interpretar os 17 personagens, a maioria masculinos, da versão final do texto. Deste modo, decidiram criar uma performance em duas camadas: as atrizes incorporam drag kings, uma versão masculina das drag queens, e esses drag kings é que interpretam os personagens da peça.
;O universo da peça é masculino. Essa violência, essa busca por poder, é absolutamente masculina. As coisas só acontecem dessa maneira porque são homens nesse universo masculino. Como seria essa história contada por essas quatro atrizes? De cara, trouxemos a questão do drag king. Não seria o caso fazer esses personagens ignorando que somos performers mulheres. Trouxemos os drags pra assumir que somos mulheres performando esse personagem masculino;, explica Fernanda Alpino.
Assim, Ana Quintas é Enzo Dmx, Larissa Souza é Walter Waleiro, Nininha Albuquerque é Little Big e Fernanda Alpino é Clint Esparradão, interpretando os personagens principais e secundários da peça, com o reforço do diretor Fernando de Carvalho, participação especial de Adriana Lodi e trilha sonora de Kino Lopes. ;Ele trabalha com improvisação, uma cacofonia de sons que acompanham ou contrastam com as cenas. E como um quinto performer;, descreve Fernanda.
Adriana Lodi, por sua vez, salienta o caráter metalinguístico do trabalho ao dar vida a Mahonney. ;É uma atriz fazendo um ator ensinando o Arturo a atuar. Ela entra em cena pra me dar uma aula de atuação, o que, de certa forma, acontece de verdade;, ressalta Fernanda. A reportagem do caderno Diversão & Arte convidou as quatro atrizes do espetáculo para falarem sobre seus respectivos drag kings, personagens, processo criativo e explicar o que é um drag king, afinal. Confira!
Atrizes na pele dos personagens
Atriz: Fernanda Alpino
Drag king: Clint Esparradão
Personagens: Arturo Ui e Cartel da Couve Flor
; De camisa xadrez vermelha e chapéu de cowboy, o drag king que dá vida ao personagem-título da peça é um grande fã de música sertaneja, assim como Fernanda Alpino. ;O sertanejo é uma coisa que eu recentemente percebi que curtia, e tive várias revelações. O Clint Esparradão é do Rolê do country, do sertanejo; é de boa família, cristão. Ele é pegador, mas é come quieto;, conta Fernanda. ;É um lugar de crítica a essa masculinidade tóxica que a gente vê não só no dia a dia, mas também na política;, considera. ;Para mim, o drag king é único. Não é um personagem. Ele é meu, vem de mim, parte de questões minhas, fantasias estéticas minhas;.
Atriz: Ana Quintas
Drag king: Enzo DMX
Personagens: Ernesto Roma, Dogsborough, Ignatius Dullfeet e Cartel da Couve-flor.
; O nome de Enzo DMX oculta duas piadas internas que lançam luz sobre sua personalidade. ;Ele é o mais moleque dos quatro, o mais sem noção, o mais zoeiro, com o Walter. Ele é funkeiro, tem uma família massa que o apoia. Aí, tem uma brincadeira com esse nome. É isso: a classe média alta anda chamando seus filhos de Enzo;, diverte-se Ana. O sobrenome é uma referência à segunda profissão da atriz, que é iluminadora. ;É o cabo mais importante de um sistema de iluminação;.
Atriz: Larissa Souza
Drag king: Walter Waleiro
Personagens: Emanuele Giri, Dogsborough, Betty Dullfeet, Promotor O;Casey, Sheet, Mulher e Cartel da Couve-Flor.
; Superalegre, superenérgico, bastante preocupado com sustentabilidade, recursos naturais e consumo de carne e bastante emotivo. É assim que Larissa Souza descreve sua versão drag king. ;O Walter tem características pertencentes a mim, mas também tem traços que eu não tenho mas que acho importante dar luz. Mas também é uma forma de expurgar situações de machismo pelas quais, eu, Larissa, já passou;, salienta. Não é um personagem. São traços que a própria pessoa que está performando considera relevantes, mas surgem também como um código do que é compreendido universalmente como masculino, essa masculinidade tóxica;, conclui.
Atriz: Nininha Albuquerque
Drag king: Little Big
Personagens: Giuseppe Givola, Bowl, Dogsborough Filho e Cartel da Couve-Flor.
; Por trás da fachada de um homem negro latino-americano, meio carioca, meio galanteador, metrossexual e boêmio, oculta-se um assassino cruel e sádico. Para compor o alter ego Little Big, além dos exercícios de corpo e improvisação que originaram os demais drags, Nininha Albuquerque foi a campo. ;Comecei a pesquisar nesses universos masculinos dentro do hip hop e do funk. Estive no Rio, então peguei muita coisa desse estilo;, relata Nininha, cujo drag faz o personagem Jivola.
*Estagiário sob supervisão de Severino Francisco