Durante mais de 50 anos, Ailton Krenak evitou atravessar o Oceano Atlântico para visita à Europa. Não queria colocar os pés na terra de quem lhe tirou a terra. Nascido em Itabirinha (MG), no Vale do Rio Doce, o ambientalista e líder indígena da etnia krenak recusou vários convites para ir a Portugal até que, em 2017, decidiu aceitar participar de um ciclo de conferências ibero-americano sobre cultura ao lado do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. Na ocasião, seria apresentado o documentário Ailton Krenak e o sonho da pedra, de Marco Altberg, no qual Krenak reflete, entre outras coisas, sobre como a ideia de humanidade foi construída nos últimos 3 mil anos.
O ambientalista se pergunta como pode ter nascido a ideia de que brancos europeus fossem considerados a humanidade esclarecida do planeta, aqueles cuja missão era trazer para a ;luz; uma humanidade obscurecida. Foi também sobre isso que ele falou em uma entrevista concedida em Lisboa e que acabou por gerar, com o convite para uma palestra na Universidade de Brasília (UnB), o livrinho Ideias para adiar o fim do mundo, que a Companhia das Letras acaba de editar.
Em 86 páginas, Krenak reflete sobre o século 21 e seus desafios, sobre o futuro do meio ambiente e sobre as escolhas da humanidade. ;Esse livrinho foi uma surpresa para mim. Fiz duas viagens a Portugal, e, nas duas ocasiões, fiz uma conferência. Em todas as situações, o público era europeu e tive a oportunidade de falar desses temas para um público que eu achava que tinha que ficar sabendo sobre essa diversidade de povos e cultura que vive aqui na América do Sul. Quando voltei, fui surpreendido com a divulgação desses textos e o interesse da editora;, conta o líder indígena, que este ano dividiu mesa com José Celso Martinez Corrêa na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).
Krenak conta que, no ano passado, diante da evidência de que Jair Bolsonaro seria eleito presidente com um discurso contrário à demarcação de terras indígenas, muitas pessoas perguntaram qual seria o futuro dos índios brasileiros. à época, ele respondeu que os índios estão resistindo há 500 anos e que sua maior preocupação, agora, era como os brancos conseguiriam sair da situação que estavam criando. ;Não me sinto angustiado com o fato de ter que encarar a realidade; encarar a realidade é maturidade, não adianta empurrar a história para depois;, garante.
A liberação de exploração de terras indígenas, o fogo na Amazônia e o desprezo pelos índios preocupam o ativista, mas ele diz que prefere se concentrar nas coisas que estão ao seu alcance. ;Eu te digo que, na ordem das minhas preocupações, começo a me preocupar primeiro com meu quintal, o rio que passa na minha casa, depois o estado, o país, o planeta. Antes de me angustiar, tem esse longo caminho;, garante. Depois do rompimento da represa de Mariana, a lama da Samarco ainda está à beira do rio Doce e isso é o que mais inquieta Krenak. ;O rio vai ficar em coma por um tempo;, lamenta. ;E temos que pensar como fazer para ficar sem rio. Nós lidamos com isso coletivamente, fica menos angustiante. É um acontecimento que a gente sabe a origem e vamos lidar com ele.;
Os krenak vivem na margem esquerda do rio e, agora, o foco está em recuperar as nascentes, replantar e reflorestar. ;Em pequena escala, dá para fazer isso com as famílias, mas, em larga escala, tem que ser um esforço do governo;, aponta Krenak, que conversou com o Correio sobre os impasses ambientais e existenciais do século 21.
Ideias para adiar o fim do mundo
De Ailton Krenak. Companhia das Letras, 86 páginas. R$ 24,90
Ponto a ponto // Ailton Krenak
Antropoceno
; Têm basicamente dois polos nessa história. Têm os que negam qualquer impacto sobre nosso modo de vida e continuam exaurindo e aquecendo o planeta e botando a sobrevivência de outras espécies em risco, o que seria identificado como uma nova era para o planeta, sucedendo as outras. E têm cientistas, que são as pessoas que pontificam esse debate sobre a exaustão do planeta pelo mau uso que estamos fazendo dos recursos. Esses dois extremos chamam a atenção das pessoas para uma verdadeira cisão entre aqueles que querem cuidar da natureza e aqueles que acham que a natureza se vira sozinha. Eu falo das duas situações, sobre o fim do mundo e sobre a humanidade que pensamos ser.
Desunião
; Talvez não seja nem a importância de se definir uma posição, mas de constatar que a disputa entre aqueles modos de vida que dependem da água limpa, da floresta e da terra como provedora e aqueles que acham que podem saquear a terra é a questão central. Precisamos nos educar para viver na terra como casa comum. Se uma parte desses habitantes da casa acredita que pode consumi-la e outra, que pode conservá-la, vamos ter conflito o tempo inteiro. E esse conflito entre mentalidades é muito mais danoso do que o próprio uso que estamos fazendo da terra, é capaz de nos colocar uns contra os outros, que é o que está acontecendo no Brasil neste momento com a Amazônia, mas podia ser com os oceanos ou os nossos rios, que estão sendo devastados.
Amazônia
; Acho que a gente teria que chegar a um clímax, a algum desfecho disso. A Amazônia sempre foi relegada, como se fosse um apêndice fora do corpo. Apesar de todo o discurso de que a Amazônia é nossa, os milhões de pessoas que sempre viveram lá sempre viveram relegados a um segundo plano das políticas públicas, em qualquer governo. No império já era assim e nas repúblicas que o sucederam, também. Os brasileiros nem sabem que a Amazônia existe. É grave isso, é como se fosse uma parte oculta do corpo que ninguém consegue alcançar, coçar. Só existe quando tem uma tragédia. Agora, ela virou um ponto crítico na relação do Brasil com o resto do mundo. Eu não imaginava que fôssemos chegar tão depressa aos limites das argumentações. De certa maneira, é bom porque não podia continuar empurrando com a barriga para o fim do mundo.
Ideias
; Uma das ideias para adiar o fim do mundo é resolver nossos problemas enquanto a gente está vivo. Não estou vendo diálogo nenhum, mas tem que buscar inteligência para lidar com uma realidade complexa dessa. Se é uma matéria mal estudada durante tanto tempo, não dá pra todo mundo virar doutor em Amazônia. Eu não sei nada, apesar de ter andado durante quase 40 anos em todos aqueles igarapés. A outra ideia é prestar atenção ao nosso redor. Tanto na questão da cultura, quanto na questão social, na complexidade e na diversidade de povos que somos. Não dá para imaginar que todo mundo quer a mesma coisa. Temos que ter capacidade de fazer gestão da diversidade dos pontos de vista e entender que os seres humanos têm visões surpreendentes sobre sua cidade, país, mundo. Não têm uma visão única sobre o mundo.
Planeta
; A gente já entendeu que mundo não é planeta Terra, são nossas ideias, é a movimentação de povos na terra. O mundo é uma criação mental de todos nós e, quando nossa criação mental fica limitada, estamos limitando a possibilidade de o mundo ser recriado e ter sentido para nós. Não é o planeta Terra, é a civilização. Tem gente que acha, inclusive, que estamos entrando num colapso desse mercado capitalista financeiro.