;Acredito que o texto deve nascer do que te golpeia, do que te doi, do rasgo que a sociedade provoca no artista;, define o espanhol Eusebio Calonge, dramaturgo responsável pelo espetáculo O desmanche das musas. Pela primeira vez, uma das companhias teatrais mais importantes e longevas da Espanha, La Zaranda, Teatro Inestable de Ninguna Parte, se apresenta no festival Cena Contemporânea. Com humor, metalinguagem e uma expressão visual forte, o grupo leva o espectador para um cabaré em ruínas, ocupado por artistas esquecidos pelo público, e questiona: O que fazer para recuperar o esplendor perdido?
O cabaré abandonado, tomado por ratos, com cheiro de suor e desinfetante, sem brilho e sem aplausos é usado como metáfora. A maquiagem barata esconde a amargura e a exaustão de um grupo de artistas. É uma alegoria de uma cultura que apenas aguarda seu colapso. ;Este é o gatilho, a metáfora é como o teatro volta a ser uma paixão útil em um mundo em que ele é relegado ao ócio, ao entretenimento mais banal, ao negócio mais sem coração. La Zaranda sempre convida à reflexão, expondo a própria consciência, abrindo as cicatrizes;, explica Calonge.
Há mais de quatro décadas, a companhia espanhola expõe palavra em forma de imagem com caráter barroco e pitadas de humor popular. O idioma deixa de ser empecilho para compreensão do espetáculo. As leituras dos trabalhos da La Zaranda não partem necessariamente do texto, mas também do desenvolvimento estético. ;Nossa linguagem é alegórica e, portanto, gera muita simbologia visual, mas é, ao mesmo tempo, muito compreensível e sensível;, pontua o dramaturgo.
Diante do abandono dos artistas, a graça se torna trágica e perturbadora. ;O humor mantém uma linha muito direta com o público. O nosso é muito cáustico, não oferece saída porque rimos da nossa própria impossibilidade de ser. Diria que é um humor muito trágico. De imediato, a gargalhada pode te deixar com a metade da consciência. É também muito necessária em nós, porque é como respirar antes que o trabalho nos imerge ainda mais profundo;, comenta Calonge. Com direção de Paco de La Zaranda, Gabino Diego, Inma Barrionuevo, Francisco Sánchez, Gaspar Campuzano, Enrique Bustos e M; Ángeles Pérez-Muñoz encenam e dão vida a essa caricatura da sociedade no teatro do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB).
Brasilienses
O novo espetáculo do Grupo Desvio, com direção de Hugo Rodas, apresenta uma dramaturgia incendiária. Prometea, abutres, carcaças e carniças estreia, como parte da programação do festival Cena Contemporânea, no Teatro Sesc Garagem. Partindo da mitologia do titã Prometeu, o ator e dramaturgo Gil Roberto se debruçou sobre a figura da águia, traduzida algumas vezes como abutre. Com dois abutres amorais se alimentando da noite dos outros, a dramaturgia ganhou um tom político, sobretudo humano, tratando dos ciclos políticos de poder que se repetem no decorrer da história da humanidade.
A liberdade poética permitiu que o grupo fosse além da mitologia e bebesse da obra de Alan Moore, que faz da heroína Promethea um avatar da imaginação. ;Prometeu é um avatar do próprio pensamento, no sentido mais racional. Promethea vai abrir esse leque e revelar outra forma de conhecer o mundo. Precisamos imaginar os cenários políticos, um cenário híbrido, para além das formas mais convencionais de se conceber as relações éticas e políticas entre os seres humanos;, detalha Gil Roberto.
O texto não é cronológico e tem uma estrutura enunciativa e narrativa, abdicando-se do recurso do diálogo. ;A noção de personagem também é diluída;, acrescenta o ator. O convite para Hugo Rodas dirigir a peça provocou uma fricção fundamental para o resultado que é apresentado ao público. ;A estética de Hugo Rodas contribuiu imensamente para a corporeidade do espetáculo. Ele exige uma presença física muito forte, assim como um apurado senso rítmico e imagético e, junto com a dramaturgia contemporânea, complementa a narrativa enunciativa;, comenta o ator e dramaturgo. O talento do uruguaio veio para provocar erupções e movimentos em um grupo teatral que gosta da experimentação.
Prometea, abutres, carcaças e carniças tem três linhas estruturantes que caminham juntas de forma híbrida: dramaturgia, encenação e trilha sonora. ;A dramaturgia não tem enredo, não se costura no sentido convencional. Isso acontece na encenação e o que dá uma espécie de liga para esses conteúdos é a música;, detalha Gil Roberto. A junção do Grupo Desvio, com Hugo Rodas e a direção musical do pianista João Lucas resultou em um trabalho de embate profundo para o fazer artístico.
Outra peça que também estreia hoje no festival é Furacão Carmen, uma criação que nasceu a partir do Cena e foi concebida, especialmente, para o ator brasileiro Murilo Grossi e o português António Revez pelo argentino Santiago Serrano. ;Ele nos perguntou: querem falar sobre o quê? Coincidentemente, António e eu falamos a mesma coisa, que queríamos questionar a possibilidade ou não da integralidade do ser humano sem a utopia;, relembra Grossi.
Com um texto sutil, lírico e poético, a peça detalha o encontro de um brasileiro com um português na cidade cubana de Havana. ;Eles desenvolvem um diálogo sobre suas vidas, expectativas, esperanças e não esperanças. São diferentes, mas complementares;, detalhe o ator. Entre brigas e brincadeiras, eles reconstroem as próprias identidades para dar sentido e esperança à vida. ;Essa esperança acaba se manifestando num apaixonar-se por uma mulher cubana. Quem é ela?;, adianta Grossi.
Duas perguntas / Eusebio Calonge
Qual é o segredo para seguir com a companhia por mais de quatro décadas?
Não há segredo algum, talvez, um mistério, algo que não depende de nós, acredito que, se alguém resiste em um mundo que já praticamente dispensa o teatro de criação, é pela necessidade de expressar o espanto ou a dor diante do mundo sem perder a força da linguagem cênica. Infelizmente, agora, soa estranho que existam companhias duradouras no teatro, já que estas estão sendo substituídas por produções comerciais, mas o núcleo criativo do teatro como arte sempre foi o mundo da companhia, é a célula que impulsiona seu desenvolvimento.
O desmanche das musas apresenta uma realidade triste e dura do teatro. Para a cultura é assim também? Acredita que isso ocorra em outros países, além da Espanha?
Necessariamente o teatro, mais do que qualquer outra arte, reflete a sociedade que vivemos, o teatro, como um espelho, é claramente expresso a partir de sua origem histórica, acredito que a força de sua mensagem estava no fato de se expressar livremente, criticamente, desde ambientes marginalizados ou marginais. O comediante, o ator, raramente era apreciado dentro do poder, do poder que chamamos de cultural. Seu escritório errante, muitas vezes nos limites da lei até suas sepulturas fora dos campos sagrados, fala de um artista em rebelião. Essa sempre foi a realidade do teatro, o prestígio literário dos autores foi dado nos livros décadas ou séculos depois. Agora encontramos um artista que o poder controla, com leis e subsídios, com as fontes da fama da televisão, não com a glória a que sempre aspirou e que faz parte de seus negócios. E, portanto, é perfeitamente suprimível. Reduzido a uma parte da engrenagem de poder, uma maquinaria de propagação de seu discurso, o politicamente correto, com medo de perder a clientela, acreditando-se rebelde quanto mais ele é dominado. O domínio, a manipulação nascem da perda desse espaço crítico e da promoção da brutalidade, da frivolidade e da falta de cultura, da perda de todo valor espiritual em face da utilidade material, e isso infelizmente é universal.
O desmanche das musas
Do espanhol La Zaranda, Teatro Inestable de Ninguna Parte e direção de Paco de La Zaranda. Às 20h, no Teatro do Centro Cultural Banco do Brasil.
Furacão Carmen
Com António Revez e Murilo Grossi e texto de Santiago Serrano. Às 20h, no Teatro SESC Newton Rossi (Ceilândia).
Prometea ; abutres, carcaças e carniças
Do Grupo Desvio com direção de Hugo Rodas. Às 20h, no Teatro SESC Garagem da 913 Sul.