Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Out of water: Brasilienses produzem musical em Nova York

Com toque brasiliense, musical Cargas d'água leva uma história brasileira com grande apelo cultural


Na ficção, Moleque, ou Kid, enfrenta uma jornada de medo, desafios e descobertas ao lado do amigo Cargas d;água, ou Out of water, para chegar ao mar do Nordeste. Na vida real, um elenco composto por brasilienses, mineiros, gaúchos, catarinenses e paulistas encara obstáculos de toda sorte para realizar sonhos e projetos em cena e fora do palco.

Depois de uma temporada de sucesso e premiações em território nacional, o musical autoral brasileiro Cargas d;água, escrito pelo mineiro Vitor Rocha, ganha versão norte-americana e desembarca na terra das megaproduções da Broadway. O espetáculo Out of water, título em inglês, está em cartaz em Nova York, mais precisamente em Manhattan. Além de uma essência genuinamente popular, a peça tem toque brasiliense com a direção de Renata Soares e Ronny Dutra e músicas da compositora Ana Paula Villar.

Apesar de uma raiz fincada na capital federal ; todos iniciaram a carreira no Planalto Central ;, os artistas foram, há alguns anos, em busca de uma cena maior. Antes de morar em Nova York, Renata viveu por dois anos em São Paulo. A mudança veio de uma vontade por especialização. ;Desde que vim para Nova York, dei uma pausa no teatro musical. Trabalhar nesse espetáculo foi um reencontro com o teatro brasileiro, me trouxe de volta para o musical, para o Brasil e para Brasília. Sem dúvidas, é um momento nostalgia;, conta a diretora. Isso porque ela e Ana Paula se conheceram nos palcos brasilienses.

A ideia de levar a produção para a cidade americana foi do produtor paulista Eduardo Medaets. ;É um espetáculo escrito e criado de uma forma muito simples. São três pessoas no palco, cenário e figurino bem simples até para se associar com a natureza puramente brasileira;, descreve Renata. O texto conta a história de um menino do interior de Minas Gerais que perde a mãe e é obrigado a viver com o padrasto. Este, egoísta, mandão e ríspido, só trata o garoto por ;moleque;, a ponto de o rapaz esquecer o próprio nome. O jovem encontra consolo em um peixe que, ao se recusar a matar, torna-se seu principal amigo.

;Como uma fábula, cada um dos personagens que o menino encontra no caminho para o mar tem uma lição para ensinar. A pauta da jornada é o medo. Esse menino vai crescendo, entendendo o que é se relacionar com os outros, vendo como cada um lida com o medo. O final é uma surpresa no sentido de ver o Moleque reconhecendo quem ele é e o adulto que ele pode se tornar;, detalha a diretora. Para auxiliar na direção, Renata convidou um amigo brasiliense e, segundo ela, conhecedor do mercado musical norte-americano: Ronny Dutra.

Apaixonado por musical desde muito cedo, Ronny viu no convite uma ótima oportunidade para mostrar não só o talento brasileiro como um Brasil diferente. ;A história, em geral, por ser brasileira, tem essa veia muito nacional e o apelo cultural muito forte. Agora, aqui em NY, o meio teatral está realmente bastante em busca de cultura, de diversidade artística e cultural;, analisa o diretor.

Adaptação


O processo de tradução do musical, com características tão nacionais, foi um dos maiores desafios. O texto, versionado por Isa Bustamanti, ganhou adaptações de piadas e expressões para o público americano e passou por uma revisão dos diretores. ;Tem falas que a gente aprendeu no dia a dia aqui e tentamos inserir. O sotaque brasileiro a gente não tem como manter. Algumas coisas acabaram se perdendo, mas, em outras, ganhamos. Algumas expressões ou ditados populares mantivemos em português e criamos um glossário no programa do espetáculo para as pessoas entenderem e para não perder a identidade;, explica Renata.

O inglês usado pelos atores Pedro Coppeti, Helora Danna e Maite Zakia é popular e coloquial. Uma estratégia do grupo para alcançar, também, uma variedade maior de público. ;Como tem aspectos de fábula, atrai o público infantil, mas tenho certeza de que está agradando o adulto também. A lição de moral é muito valiosa e mais profunda. Os medos e as dificuldades são reais e relacionáveis;, afirma a diretora.

A simplicidade e o jeito prosaico do musical são, para o elenco, os seus diferenciais. Sobretudo, para um público e uma cidade tão acostumados a produções gigantes. ;Em Nova York, as pessoas estão sedentas por novidade, por cultura, pelo que é diferente. Acho que a gente está aparecendo em um momento muito propício para o mercado. É diferente da normalidade;, conta Renata. A dificuldade está, para a brasiliense, como em qualquer produção. ;Produções artísticas para existirem têm uma dificuldade inerente;, complementa.

A vontade do grupo de dar voz e som ao texto em território estrangeiro é, na verdade, uma vontade de mostrar um Brasil diferente. Um Brasil que os representa. ;Mostrar que a cultura brasileira é mais do que futebol e carnaval. Temos uma cultura popular que é muito rica. Apesar do espetáculo ser todo em inglês, você não se esquece do lugar que está e isso só enriquece culturalmente;, afirma Renata. Por isso, ela e Ronny fizeram questão de manter um elenco 100% brasileiro.

O público tem gostado, inclusive do pão de queijo e do doce de leite vendidos ao final do primeiro dia de apresentação. Formada metade por brasileiros e metade por americanos, a plateia se surpreende com a energia e os estrangeiros, com a descobertas do outro país. ;;Mas tem deserto no Brasil? Não é tudo floresta amazônica?; Eles não têm noção da grandiosidade, da diversidade de cultura, de vegetação, de gente. Tem sido uma experiência bacana compartilhar um pouco da nossa cultura aqui;, conta a diretora. ;É preciso ter um olhar apurado para o paladar americano. Trazer o musical foi um desafio muito grande por conta da brasilidade do espetáculo, porque precisava ser apresentado de uma forma que fosse relevante para eles, para deixá-los apaixonados pela nossa cultura. Fazer a ponte de conexão sem que a gente pudesse perder as nossas veias. É possível fazer isso;, acrescenta Ronny.

Pergunta/ Renata Soares, Ronny Dutra e Ana Paula Villar



A história de Moleque se assemelha em algo com a sua? Em algum momento, alguma situação, a busca pelo desejo, enfrentar os medos, se descobrir...

Renata ; Uma das grandes lições que o Moleque me ensina é aprender a abrir mão de certas coisas. Do passado, de ideias que não me ajudam a avançar, a crescer na vida. A gente se apega a ideias que podem ser limitantes para o nosso crescimento. Ele me ensina a abraçar o novo, a encarar o novo com amor, com leveza, com sorriso. Sou a única pessoa da minha família que mora aqui (NY). É um desafio todo dia. Mas, saber que estou aqui para um propósito maior, uma escolha minha me acalenta e é mais gratificante quando vejo que consigo realizar projetos como esse.

Ronny ; Todo mundo tem um pouco do Moleque dentro de si, estamos em busca do nosso mar. É uma história parecida com a minha vida. Saí de Brasília aos 23 anos, em busca dos meus sonhos, do meu próprio mar, com meu baldinho, o meu peixinho, que, no meu caso, era uma mala apenas e fui fazer acontecer. Na nossa jornada, a gente acaba se deparando com os medos, os desejos, os segredos, as tentações do mundo, os personagens que estão ali para atrapalhar ou aqueles que vão ajudar. E a nossa jornada nunca acaba. Quando você chega ao mar, você olha e vê o oceano. A peça mostra para todo mundo que sonhar é permitido e que o medo está ali para te fazer forte.

Ana Paula - Com certeza! É quase impossível não se identificar com ele. Acho que a parte que eu mais me identifico é a de sair da ;zona de conforto; pra enfrentar tudo e todos com um objetivo! Quando a gente resolve se movimentar pra realizar alguma mudança significativa na vida, muitas pessoas aparecem no nosso caminho. Algumas pra ajudar, outras pra atrapalhar ou tentar te fazer desistir, exatamente como acontece na história do musical. E é muito inspirador acompanhar a história do Moleque, que mesmo com tantos percalços, foi se descobrindo e entendendo como enfrentar todos esses medos e obstáculos!