Há uma sensação de ocaso comportada no clássico de Peter Bogdanovich A última sessão de cinema (1971), que parece atravessar o mais recente filme do celebrado Quentin Tarantino, que, em Era uma vez em... Hollywood, descreve um marco abrupto para a geração oba-oba, sem limites, fins dos anos de 1960. A permissividade das drogas, a pressão do conflito no Vietnã e um crime chocante ; que envolveu a atriz Sharon Tate e o bebê esperado por ela, do cineasta Roman Polanski ; maculou parte de uma geração que nunca esquecerá do massacre promovido por um braço da seita liderada pelo assassino Charles Manson. Tudo vem carregado de cores e com tintas sanguinolentas, à la Tarantino.
Grosso modo, o mais recente longa do diretor, antes mesmo de tratar de intolerância, de invasão de propriedade, de hostilidade suprema, se atém a debater a obrigação do cinema para com a realidade. O passado pode ser exumado de uma forma criativa e que convide à reflexão? Reconsiderar um painel protagonizado por uma casta da sétima arte, leva o filme a afunilar o foco em dois personagens fictícios: o astro decadente Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) e o dublê dele, o faz-tudo Cliff Booth (Brad Pitt).
Na beira do abismo, Dalton tem passagem pelo programa de tevê The FBI e ainda aguarda o piloto para a rede CBS de uma série chamada Lancer. É a porta aberta para a declaração de amor pelo western, urdida por Tarantino.
O quê pop acenado pelos cenários, que incluem salas Cinerama, modorrentas comunidades hippie e a sofisticação de restaurantes como o Musso & Frank Grill, é digerido, ruminado e regurgitado pelo diretor de Kill Bill. Várias tramas se alinham, levando à convulsiva (e repulsiva) conclusão do final. Polanski (Rafal Zavierucha) e Tate (Margot Robbie) são os vizinhos de Rick Dalton, numa mansão da famosa Cielo Dr. (em Los Angeles). Com roteiro dispersivo, mas monumental, a cargo de Tarantino, o espectador vê o despontar de Sharon Tate e a recomposição de Dalton, um astro quase vencido pela bebida (há uma cena em que DiCaprio dá ares de um Robert De Niro, em Taxi driver), além da formação de um endiabrado séquito de Charles Manson.
Intermediando todo o enredo, está a espécie de avatar de Rick Dalton, o dublê Booth, que, na real, vive a vida menos glamourosa que, sem maiores perdas, o ex-astro Dalton poderia muito bem assumir. Numa das sequências mais divertidas (e polêmicas), Booth encara ninguém menos do que o astro que vê ;as mãos como armas letais;, Bruce Lee (uma histriônica, e cheia de berrinhos, representação a cargo de Mike Moh). Numa ;luta amistosa;, para se ter ideia, um corpo amassado na lataria de um carro define vencedor. Também cool, como de praxe, são os usos das músicas da trilha que contempla obras de Paul Revere & The Raiders, Neil Diamond, Simon & Garfunkel, e músicas como Always is always forever e California Dreamin;.
Cabedal de citações
Referências e reverências não faltam no pesado andamento de Era uma vez em... Hollywood: há citações a ações nazistas, a diretores com Sam Wanamaker (Nicholas Hammond) e Sergio Corbucci, a filmes como Fuga do inferno e Vale das bonecas, isso além de um desfile de personalidades como Dennis Hopper (apenas mencionado), George Spahn (o veterano Bruce Dern, na pele de um homem associado com a figura dos seguidores de Charles Manson), Jay Sebring (Emile Hirsch) e Steve McQueen (Damien Lewis).
No filme muitas das mulheres agem como zumbis e fantasmas, tolhidas pelo domínio masculino. Numa exceção, Squeaky Fromme (Dakota Fanning) mostra vigor como a amante do mancomunado George Spahn (que teria sido permissivo, no rancho de sua propriedade, com um aglomerado de hippies nada bem-intencionados). Também decisiva é a participação da atriz Mickey Madison, que, vivendo, a atordoada Sadie, trama uma tese de liquidar, no antro de Hollywood, aqueles que encenaram, na tevê, algo que afetou toda uma geração (como a dela) que ;cresceu vendo mortes, via programas televisivos;.
Com os pés sujos, reclinada numa poltrona de cinema, a atriz Margot Robbie (de Esquadrão suicida) ajuda a desmistificar parte da imagem de inalcançável Sharon Tate. Até o entoar de uma das frases mais pesadas de Era uma vez em... Hollywood ; a fatídica ;Eu sou o diabo e vim pra fazer coisas do demônio; ;, muito se passa nas quase duas horas e 40 minutos de projeção. Para os desavisados quanto às abordagens de Tarantino ; vale a ressalva: há de crânios esfacelados nas quinas de balcões a queimaduras de personagens à base de lança-chamas, passando por corpos ensanguentados que se debatem sem parar.