Histórias para contar não lhe faltam. Sobretudo, se acompanhadas por música e muita emoção. O pianista e ;velho maestro;, como se define João Carlos Martins, percorreu o mundo com seu talento. Desde os 8 anos de idade, ele revelou maestria na execução das obras de Johann Sebastian Bach. São mais de seis décadas dedicadas à música clássica. Seu nome também invoca um conhecido relato de superação, que inclui acidentes, complicações osteomusculares nos membros superiores e 24 cirurgias neurológicas. A última, inclusive, amenizou dores no braço esquerdo, mas limitou, de forma definitiva, os movimentos nos dedos da mão.
Ao piano, João Carlos Martins agradeceu os anos de companheirismo e guardou os ensinamentos e as conquistas. Aposentou e seguiu para a regência, na qual ele descobriu histórias de um outro Brasil e definiu o legado que pretende deixar. ;No piano, só posso agradecer a Deus tudo o que aconteceu. Perdi as mãos para o piano, mas na regência encontrei o meu destino. Resolvi carregar a bandeira do Villa-Lobos, porque ele dizia: ;Não é um público inculto que vai julgar as artes, as artes que mostram a cultura de um povo;;, relata o maestro.
Realidade
Em 2018, nascia o projeto Orquestrando o Brasil, uma plataforma digital para disseminação de conteúdo, oferecendo capacitação destinada a regentes e músicos, além de ser uma ferramenta para a troca de conhecimento. Martins começou a visitar diferentes cidades do país e conhecer a realidade de municípios que, por exemplo, não têm acesso aos grandes centros culturais, mas que mantinham uma pequena banda. ;Nas visitas, vou juntando cordas com sopros e formando a orquestra. A cada 15 dias, além de estar presente fisicamente, recebo vídeo do ensaio deles, faço comentários e, no site, publicamos tudo. Vamos começar com aulas on-line ligando os alunos das diferentes regiões também;, conta o maestro.
Para ele, o Brasil é um país musical. E, assim como Villa-Lobos, seu intuito é fechar o país em forma de coração por meio da música. ;Ele conseguiu que todas as escolas tivessem o ensino de música em uma época que não tinha nem tevê nem internet. Quem sou eu perto de Villa-Lobos, mas pela exposição na mídia, eu resolvi carregar essa bandeira;, justifica Martins. Em pouco mais de um ano, o projeto, realizado em parceria com a Fundação Banco do Brasil, Sesi e Fiesp, reúne 430 orquestras, um universo que representa mais de 15 mil músicos, com grupos musicais de 180 municípios espalhados em 14 estados, incluindo o Distrito Federal.
"Uma palavra mágica"
Na próxima sexta-feira, o maestro se apresenta na capital federal com dois grupos do Orquestrando o Brasil. Sob sua regência estarão a Orquestra de Sopros e Percussão Arte Jovem, de Ceilândia, e a Orquestra Casa Azul Felipe Augusto, de Samambaia. O concerto ocorre no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), às 20h.
;Maestro é uma palavra mágica no mundo inteiro e compartilho com as pessoas que encontro a importância do maestro naquela cidade;, conta Martins. Em cada parada, ele se depara tanto com crianças que acabaram de iniciar os estudos musicais, como com idosos que o maestro convida a tirar o trompete da gaveta e participar do grupo. ;Divido o público em quatro tipos. Têm aqueles que só no futuro poderão fazer parte de uma plateia; aqueles que poderão ter a música como hobby; aqueles que poderão fazer parte de uma orquestra profissional, não são gênios, mas são músicos e, finalmente, os diamantes a serem lapidados;, detalha. Todos eles são fundamentais para Martins, pois não adianta ter mil orquestras se não tem plateia.
Como exemplo, Martins cita o pequeno Davi Campolongo. O ator foi escolhido entre 50 crianças para interpretar o maestro no filme João, o Maestro, drama que conta a história e a trajetória do pianista e maestro brasileiro. ;Quando vi a mão dele, percebi que ele era um diamante;, relembra o artista. Hoje, Davi toca Mozart ao lado de Martins. O maestro também destaca as discrepâncias do Brasil. Enquanto cidades com alto poder econômico, como Ribeirão Preto (SP), lutam para manter suas orquestras, pequenos municípios transformam as apresentações em grandes eventos que envolvem toda a população.
A aposentadoria do piano fez com que Martins descobrisse não apenas a regência, mas um talento digital. ;Foi uma recomendação do Alexandre Nero (ator que interpreta o maestro na fase adulta do filme João, o Maestro). Ele virou para mim e disse: ;Como você é brega. Faça um Instagram e publique os vídeos de você tocando no mundo inteiro, nem todo mundo era nascido;;, relembra aos risos.
Digital
Apesar de não ser ligado em tecnologia e de ter um ;celular que só pode discar;, aos poucos, o maestro se tornou uma figura importante nas redes sociais. Sua página no Instagram soma mais de 81 mil seguidores. Uma visibilidade que ajuda, também na propagação e no alcance do Orquestrando o Brasil. ;Entrei com tudo nisso;, brinca.
Em 2020, ao celebrar seus 80 em um concerto em Nova York, o maestro quer mostrar que com ideais e, sobretudo, dedicação se faz um projeto de sucesso. ;Há 20 anos, prometi para o meu pai que faria de tudo para deixar um legado. Não sei se vou conseguir, mas vamos tentar tanto deixar o legado como realizar o sonho de Villa-Lobos;.
Acolhimento e educação
Em outubro de 1989, há quase 30 anos, a Casa Azul Felipe Augusto começava a partir de um trabalho voluntário de uma mãe, após a perda dolorosa do filho. Aos poucos, em contato com a realidade de Samambaia e de outras comunidades carentes, o projeto cresceu e, hoje, atende mais de 2 mil crianças e jovens de 6 a 24 anos e também algumas famílias. A entidade, presidida por Daise Lourenço Moisés, proporciona, no contraturno escolar, oficinas de artes, teatro, dança, música, informática, atividades esportivas, orientação pedagógica e capacitação profissional.
Este ano, a Casa apresentou proposta ao maestro João Carlos Martins que, logo, se encantou com a orquestra em formação. Nas atividades musicais da entidade, participam cerca de 250 crianças e adolescentes. ;Conseguimos perceber resultados práticos na vida das crianças que participam da música. Elas desenvolvem a concentração, o senso crítico, o relacionamento interpessoal, o respeito ao próximo, a criatividade e tantos outros aspectos que contribuem para o desenvolvimento delas. Fazer parceria com o Orquestrando o Brasil é motivo de muita alegria, principalmente, para as crianças que estão participando da musicalização, porque o maestro João Carlos Martins é uma referência em nosso país, e é nele que as crianças também se espelham;, afirma Josselma Viana, coordenadora da Casa Azul Felipe Augusto.
Além de Samambaia, a instituição atende a população do Riacho Fundo II, São Sebastião e Vila Telebrasília. Para manter as atividades e os custos, a Casa conta com convênios com o setor público e parcerias com empresas privadas, além de doações, contribuições de pessoas físicas e arrecadações em bazares.
Localizada na Casa do Cantador, em Ceilândia, a Orquestra de Sopros e Percussão Arte Jovem é composta por 90 integrantes. Inspirada em mais de duas décadas de trabalho voluntário desenvolvido pelo maestro Edmilson de Siqueira Campos, ela foi criada em 2016 por iniciativa do seu diretor musical e maestro Edmilson Júnior e da coordenadora administrativa Inayá Amanacy.
Duas perguntas / João Carlos Martins
Por que projetos de inclusão social com a música dão certo?
Faço visitas à Fundação Casa, antiga Febem, e uma vez recebi um presente com um bilhete: ;Tio maestro, a música venceu o crime, Feliz Natal;. Quando você faz a divisão em quatro grupos: formação de público, música como hobby, talento que pode tocar numa orquestra e diamante, no momento que você faz essa divisão, o projeto de inclusão social passa a ser uma luz no fundo do túnel. Chego para o jovem e falo: ;Tenha certeza que se continuar firme na música, do jeito que nós estamos, procurando a revolução musical, você vai poder casar, ter sua família e sustentar a sua família por meio da música;. Tem também a disciplina e o respeito. Eu sempre digo que o resultado de uma carreira é 2% é o dom de Deus e 98% é a disciplina de um atleta, ou seja, 2% é a alma de um poeta, sem a alma do poeta não acontece nada e sem a disciplina, também. Falo também que a função do artista é transmitir emoção. Hoje, a coisa mais importante que nós necessitamos é a palavra emoção.
Como levar a orquestra para um público jovem?
A diversidade ajuda a formação de público. Vou fazer uma apresentação que vai de Beethoven a Maria Bethânia. Depois, me apresento com Chitãozinho e Xororó. Para aquelas pessoas de nariz empinado entenderem a força da música sertaneja nas raízes do Brasil, e o público da música sertaneja entender que tudo vem da música clássica. Bach foi a síntese de tudo e a profecia de tudo. É importante fazer com que um público respeite o outro. Só existe um tipo de música, a música de bom gosto. Importante também não esperar o público ir ao teatro, mas ir ao encontro do público. Se todos os músicos clássicos de ponta saíssem de suas torres de marfim e tivessem essa mentalidade. Não adianta reclamar que não tem público. Por fim, tem o carisma, a parte carismática do maestro é muito importante para atrair o público.