Ricardo Daehn
postado em 04/08/2019 06:07
Mantendo intactas memória e legado de um ;grande homem;, como reforça a cineasta Bárbara Paz, o cinema brasileiro, por meio do documentário Babenco ; Alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou chegará em mostra competitiva do Festival de Veneza, ao fim do mês. Grosso modo, projeta o Brasil, no exterior, com a carga recentemente sugerida pelo presidente Jair Bolsonaro para projetos da sétima arte: retratar heróis. O diretor Hector Babenco, em meio ao cenário da ditadura dos anos 70 e 80, chegou a se naturalizar brasileiro, ;levou o cinema brasileiro à internacionalização; (dirigiu Pixote e O beijo da mulher aranha, saudado no exterior em que dirigiu ainda astros como Jack Nicholson e Meryl Streep), e, acima de tudo, lutou pela vida, vitimado em 2016 por parada cardiorrespiratória. ;O filme é um resgate do tempo que lhe foi tirado, e de seu cinema que o manteve vivo;, explica Paz. Coincidindo com os primeiros passos da Ancine (Agência Nacional do Cinema), nos anos 2000, Babenco, vale lembrar, levou quase 5 milhões de público para cinemas, com o longa Carandiru.
[SAIBAMAIS]Na contramão de um anseio da classe artística, a desestruturação e até mesmo a extinção da Ancine, foi propalada por Bolsonoro. ;Eu acredito no bom senso. As artes e, em especial, o audiovisual são estruturantes na cultura brasileira. Não acredito na extinção de nada. Estamos fazendo um trabalho muito importante de crescimento da indústria. A gente precisa focar em uma agenda positiva, nas conquistas: é uma alegria imensa ter meu documentário como o único feito por uma brasileira que estará em Veneza. Eu não toleraria censura no Brasil, acredito que assim como em qualquer país democrático com instituições ativas, nos dias atuais, obviamente não ficariam em pé nenhum tipo de censura;, diz Bárbara Paz.
Crescimentos de mercado respaldam ideiais de Bárbara Paz, que reforça que a Ancine não encampa apenas cinema ; é televisão, é publicidade, aglomera as plataformas digitais, games. ;A Ancine é muita coisa: ela controla toda a presença das televisões internacionais no
Brasil, especialmente as americanas. O Brasil é uma potência no audiovisual mundial, como segundo maior mercado na Netflix. Estamos no top 10 do mundo de ingressos de cinema, temos os maiores canais do mundo para televisões a cabo. O Brasil tem, por direito, ser protagonista na produção e na redenção dos talentos audiovisuais;, comenta a diretora e atriz. Junto com a propriedade intelectual em jogo, ela cita exemplos de governos na Europa, e em países como a Austrália, que são governos de direita, mas que tratam a questões culturais e de educação ;de forma respeitosa e que valorizam o próprio país;.
;Secretaria capenga;
Produtor executivo de Tropa de elite 2, além de criador de sucessos ao lado de realizadores como Eryk Rocha, Domingos Oliveira, Selton Mello e Vladimir Carvalho, Leonardo Edde, que é presidente do Sindicato da Indústria Audiovisual (Sicav), não consegue sequer comentar do suposto ;filtro; de conteúdo aventado por Bolsonaro. ;Todo nosso arcabouço regulatório e jurídico está vinculado a tratados internacionais com a ONU, a Unesco e a Declaração Universal dos Direitos Humanos e à nossa Constituição. Não sou jurista, mas leis têm que ser respeitadas;, avalia. Diante da extinção da Ancine, o impacto se intensifica: sem um elemento (Ancine) do tripé do segmento, formado ainda pelo Conselho Superior de Cinema e pela secretaria do Audiovisual, a base do audiovisual ;ficaria capenga;.
;Seria como extinguir a produção nacional ; isso serviria a quê, a uma ideologia comercial? É temerário desestruturar uma agência de Estado, embaralhar o setor. Ainda mais numa indústria jovem como a nossa: você desestrutura regulação, fiscalização e o fomento de todo um organismo institucional. Nossas conquistas, nos últimos 20 anos, vêm pelo aprimoramento da regulação;, argumenta Edde, professor ocasional da Academia Internacional de Cinema. O andamento de um serviço efetivo para a população, realizado pela Ancine ; que, ;desde o surgimento, alavancou o mercado de forma considerável;, na observação da diretora Laís Bodanzky ; depende da desfeita de ;um ruído de comunicação;, como ela opina.
;Falta compreensão no motivo da existência da Ancine, mesmo entre a população. É uma agência que estimula o desenvolvimento do audiovisual. Hoje, o segmento reponde por 0,46% do PIB, sendo maior do que o da indústria têxtil e do ramo farmacêutico. Contribui com postos de trabalho e ainda com recolhimento de impostos. O Brasil já se afirmou como a quarta maior população mundial consumidora de audiovisual no mundo;, comenta a diretora que, recentemente, com o longa Como nossos pais fortaleceu a projeção do empoderamento feminino, em instâncias como o Festival de Berlim.
Com a ação de setores da Ancine, ela lembra que houve modernização do parque exibidor de filmes no Brasil, ;o 13; mercado de audiovisual do planeta;, fator que acarretou em aumento no número de ingressos vendidos, para um setor que otimiza a imagem do Brasil no exterior, com resultados de filmes como Cidade de Deus e O menino e o mundo (que disputaram o Oscar) e Bacurau (premiado em Cannes). ;O segmento audiovisual está atento, e em estado de alerta ; a melhor reação é o convite ao diálogo. Conflito não gera denominador comum de interesses. Queremos ver revertida esta sensação de filtro que paira;, conclui.
Entenda o caso
Há duas semanas, por meio de decreto, Jair Bolsonaro afastou do antigo âmbito do Ministério da Cultura o relevante Conselho Superior do Cinema, entidade agora instalada na Casa Civil; e mais, reduziu pela metade o número de integrantes, fortalecendo o braço federal contraposto a encolhimento da participação dos profissionais do setor do audiovisual. Além disso, em declarações controversas, deixou um destino incerto para a Ancine (Agência Nacional do Cinema) sugerindo filtro de conteúdo, ou mesmo incitando o fim da agência. Pelo que considerou ;bem de todos;, prometeu revisão na aplicação de recursos financeiros em filmes, desautorizando o que considerou ;produção de pornografia;. Foi criado um impasse com a classe de diretores e produtores, com reações como a de Marcus Ligocki, brasiliense que redigiu carta-aberta ao presidente.
Três perguntas /Cacá Diegues
O que poderia ser otimizado com um reordenamento da Ancine? Existe algum vício nítido que justifique maior controle da agência?
A Ancine precisa de uma reestruturação que, no fundo, é apenas uma volta ao que ela deveria ser, a partir da MP de 2001 que a criou. As intenções do governo nessa reestruturação, entretanto, não são as nossas. No meu entender, a Ancine tinha que deixar esse modelo de concentração de poder, que existe hoje, e ser restaurada em três diferentes frentes de gestão: o fomento, a regulação e a fiscalização. O governo acertou quando decidiu levar a regulação para a Casa Civil e o fomento para outra área. Agora, vamos ver que política será traçada para esse modelo. Antes de tudo, essa política terá que ser democrática, sem censura a nenhum tipo de filme.
;Filtro; ou extinção da Ancine ; o que isso sinaliza?
Uma extraordinária incompreensão e má vontade em relação à atividade e à economia cinematográfica brasileira. Além de um crime contra a democracia que nos custou tanto instalar no Brasil moderno. ;Filtro;é censura prévia, coisa que o artigo 5; de nossa Constituição proíbe expressamente. E o presidente atual jurou respeitar essa Constituição. ;Extinção da Ancine; é um modo simples e cruel de acabar com a produção de filmes no país. Por enquanto, pelo menos temporariamente, durante não sabemos quanto tempo. Foi o que Fernando Collor tentou fazer, extinguindo a Embrafilme. Levamos algum tempo para reconstruir o cinema brasileiro, mas finalmente o fizemos. O mesmo vai acontecer agora, se o governo tentar acabar com o nosso cinema: uma vitória aparente e uma derrota ao longo do tempo.
Orientações de fundo ideológico parecem estar por trás do súbito interesse do governo em desmantelar a Ancine?
Não temos como evitar a sanha do governo contra a liberdade de criação e imaginação. Mas nem por isso deixaremos de lutar. Espero ardentemente que o governo compreenda que o cinema é uma força cultural da nação, um instrumento de nosso soft power, uma economia que dá emprego e renda para o país. Que é, sobretudo, um espelho da nação que nos ajuda a compreender quem somos e quem podemos vir a ser. Todos os países cujo estado se preocupou com o cinema nacional, se deram bem, cresceram junto com ele. Queremos a mesma coisa para o Brasil, e vamos nos empenhar por isso.