Em As Cangaceiras - Guerreiras do Sertão, público e crítica parecem estar plenamente de acordo: trata-se de um belo espetáculo. As razões de um e de outro para a acolhida calorosa, porém, nem sempre são as mesmas. O que traz à obra um sabor ainda mais interessante. A plateia pode assistir satisfeita a título que une o entretenimento à recriação de um momento histórico. Já pesquisadores e estudiosos aplaudem o percurso frutífero de um dos nossos melhores dramaturgos: Newton Moreno.
Logo após a morte de Lampião, em 1938, o cangaceiro Taturano (Marco França) briga para ocupar o poder quando se depara com uma insurreição feminina. Inicialmente, sua companheira Serena (vivida por Amanda Acosta) brigava apenas para reaver o filho que lhe fora roubado. Enquanto foge, porém, encontra outras mulheres e transforma a desavença individual em luta coletiva.
Se não há registros de que tenha havido uma rebelião de mulheres cangaceiras, existem fontes documentais que relatam a peculiar situação daquelas que tomaram parte nas campanhas de bandoleiros pelo sertão. Um dos mais polêmicos fenômenos da história recente, o cangaço é visto ora como manifestação de heroísmo, ora de crime. Se é verdade que roubavam e matavam pelo Nordeste, também há relatos de que eram destemidos e defendiam os interesses dos desfavorecidos.
A controvérsia se estende à participação feminina: se muitas foram roubadas de suas famílias e violentadas, outras se juntaram ao bando em busca de aventura, para fugir da vida sem perspectivas que levavam ou dos maridos que as cerceavam.
Na costura desse contexto factual à trajetória de personagens ficcionais, o autor sabe manejar as estruturas de forma a cativar o espectador. De cara, lança a isca da busca pelo filho perdido - um tema fartamente explorado pelo melodrama. Desse mote, vão surgir os componentes que problematizam a violência contra a mulher até trazer o assunto ao debate contemporâneo. Tudo com a gravidade que o assunto pede, mas sem abrir mão da ambição de seduzir quem assiste.
Newton Moreno amarra heranças da cultura popular para dar corpo às próprias inquietações como artista. Foi assim que construiu alguns de seus mais reconhecidos trabalhos, como Agreste, Assombrações do Recife Velho e Memória da Cana. Com As Cangaceiras, ele repete a receita, trata de luta social carregando o público pela mão e deleitando-o com seus inventos de linguagem. A novidade fica por conta do formato musicado. Mas essa sua estreia teve o apoio essencial de Fernanda Maia. Com larga experiência no gênero, ela é responsável pela direção musical do espetáculo, que conta com canções originais.
Outro fator que concorre a favor da criação é a heterogeneidade do elenco, composto por intérpretes oriundos de diferentes vertentes: tanto do teatro de grupo, de caráter mais experimental, quanto da indústria dos grandes musicais brasileiros. Ainda que a trama inicial sugira o protagonismo de Serena, a quem cabe o papel da heroína, gradativamente a história se adensa e abre espaço para que outros personagens também ganhem importância.
Rebeca Jamir é Mocinha: à primeira vista uma enamorada clássica, ela surpreende pelos questionamentos que impõe a seu par romântico. Luciana Lyra aparece como a Viúva - a quem cabem os mais sérios questionamentos sobre a submissão feminina. Seu discurso é contundente e ela defende que peguem em armas contra a dominação dos cangaceiros. Já Carol Badra cativa como Zaroia, trazendo graça ao contexto. Seu humor, contudo, antes de suavizar a proposta, garante que o debate soe mais próximo.
A direção de Sergio Módena é sóbria, o que não quer dizer anódina. Seria um erro não apontar seu cuidado em fazer com que todas as engrenagens da montagem funcionem a contento e sem arestas. Além da bem cuidada direção de atores, o que extrapola as atuações individuais e garante ótimo rendimento do conjunto, não soterra com uma encenação vaidosa uma proposta que busca o diálogo direto com a plateia.