postado em 18/07/2019 04:07
A minissérie não traz uma história estereotipada do sofrimento. Elas traz uma narrativa sobre o sofrimento, uma exposição dura a que jovens negros são submetidos quando enfrentam a polícia, o judiciário, o sistema carcerário e também o julgamento de uma sociedade racista, essa sim perpetuadora de estereótipos negativos das culturas negras. Algumas críticas, inclusive, se relacionam a esse aspecto. Questionando em que medida, a minissérie não corroboraria com essa perpetuação, muito mais do que propriamente a combatendo.
Acho que essa crítica pode ser encaminhada de várias formas, inclusive no diálogo proposto pelo crítico de cultura KC Ifeanyi, que numa das primeiras reações que li falou a impossibilidade de assistir à série, exatamente por não suportar ver, rever e reviver as violências ali representadas, trazia também o questionamento sobre o público a que a obra se destina. IFeanyii comenta o quanto a minissérie se destina, em certo sentido, mais a uma audiência branca. Acho essa uma crítica em relação ao público possível, mas que desconsidera em parte a seriedade e o compromisso de Duvernay com as comunidades negras. Para mim, o que nesse comentário se apresenta como interessante é falarmos sobre essa recusa em assistir relacionado ao trauma das culturas negras, fato que vem inclusive sendo bastante falado no contexto brasileiro.
Lembro-me primeiro de um questionamento de Saidya Hartman, professora de literatura comparada, escritora, feminista, teórica, afro-americana que em seus trabalhos com os arquivos da escravidão nos EUA, quando ela se pergunta: ;Como revisitar a cena de submissão sem replicar a gramática da violência?; Acho que esse é um desafio presente para todos que se dedicam trabalhar com os traumas da colonização e do racismo. E não há sucesso garantido na forma. Será sempre difícil e controverso.
Assim, quando as pessoas negras decidem olhar ou optar por não ver, para mim, são gestos revolucionários que dizem respeito às formas contemporâneas de expectorialidade. A minissérie é relevante, pois além da denúncia do racismo na sociedade estadunidense, proporciona também esse tipo de debate, onde podemos pensar em um outro nível sobre as espectadoras e espectadores negros, sobre as imagens que queremos ou não ver. O debate em nada desqualifica a qualidade de Olhos que condenam e nem questiona a existência da série. 99 não é Spielberg em A cor púrpura, é preciso não esquecer as diferenças.
Janaína Oliveira é pesquisadora, curadora de cinema e coordenadora do Fórum Itinerante de Cinema Negro (FICINE)