Uma das coisas que mais fascinou o economista Fernando Santos Coelho quando descobriu O Pasquim, no final dos anos 1960, foi o clima de anarquia e liberdade reinante nas páginas do jornal. ;Era uma cambada de porraloucas inteligentíssima, criativa e cada um fazia o que queria. Era muito incrível, muito moderno;, conta. A vontade de manter a história do jornal criado por Jaguar, Tarso de Castro e Sérgio Cabral em 1969 levou Fernando a propor à Biblioteca Nacional (BN) a digitalização de todas as edições de O Pasquim para integrar o acervo da hemeroteca da instituição. O trabalho começou no ano passado e deve estar disponível para os leitores a partir de outubro.
Durante quase um ano, uma equipe de 12 pessoas do laboratório de digitalização da BN, no Rio de Janeiro, se debruçou sobre as 1.072 edições publicadas entre 1969 e 1991, quando O Pasquim foi extinto. Um total de 37 mil páginas foi transformado em arquivos digitais e agora passa por indexação, o que permitirá aos internautas fazer pesquisas refinadas por palavras, inclusive para as imagens, já que boa parte do jornal trazia charges, quadrinhos e ilustrações. ;O que a gente fez de diferente é que estamos classificando, inclusive, os colaboradores, página por página. E, na pesquisa, você poderá procurar por colaborador;, avisa Coelho.
Quando a BN topou o projeto, Coelho foi atrás da autorização para cessão dos direitos autorais. Hoje, é Ziraldo quem detém o controle da marca. Com o autor de O menino maluquinho, Coelho conseguiu também algumas das edições que faltavam. Na BN, havia apenas 600. Além de Ziraldo, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) cedeu algumas edições, o que permitiu a reunião completa de todos os Pasquins publicados ao longo de 22 anos. ;Acho importante contar a história de como foi esse jornal que, em 20 números, aumentou a tiragem de forma exponencial e passou a produzir 200 mil exemplares por semana;, explica Coelho. A primeira edição foi publicada em junho de 1969. Um total de 28 mil exemplares foi distribuído às bancas. Não foram necessários seis meses para a tiragem atingir 250 mil exemplares.
Colaboradores
Fernando Coelho Santos também é o curador de uma exposição programada para outubro sobre a história do jornal, com cenografia a cargo de Daniela Thomas. Programada para ocupar o Sesc Ipiranga, em São Paulo, a mostra vai reunir edições e revisões críticas de colaboradores, pesquisadores, jornalistas e ilustradores. Fernando Santos Coelho se formou em economia na Faculdade Mackenzie, mas sempre teve o que chama de ;lado B;, ou um fraco pelos quadrinhos e ilustrações. Na própria faculdade, em 1973, criou o primeiro Salão Brasileiro de Humor e Quadrinhos, que mais tarde daria origem ao Salão Internacional de Humor de Piracicaba.
Para complementar o material, Coelho também colheu depoimentos que estarão disponíveis no site da BN Digital. No link História do jornal, Sérgio Augusto e Rick Goodwin narram como começou o Pasquim e o papel do hebdomadário no contexto político e social do Brasil durante o tempo em que foi publicado. Cerca de 20 textos dos colaboradores que trabalharam na redação estarão em Memórias do jornal.
Depoimentos
Em mãos, Coelho já tem os depoimentos de Olga Savary, Jaguar, Tarik de Souza, Miguel Paiva, Ziraldo, Caulos, Reinaldo Figueiredo, Nani, Claudius, Ivan Fernandes, Martha Alencar, Maria Lucia Rangel, e Rick Goodwin. Vídeos e entrevistas também devem fazer parte do material. ;Assim, teremos os nomes de todos os que colaboraram com o jornal por 22 anos e será possível ver, na sequência, todos os trabalhos de cada um que colaborou com o jornal;, garante. O teste da página está programado para ser realizado durante a exposição no Sesc, em outubro, mas ainda haverá pelo menos dois meses de trabalho posteriormente.
O Pasquim reuniu a nata do humor e do jornalismo brasileiro, com nomes como o de Ziraldo, Millôr Fernandes, Luiz Carlos Maciel, Ivan Lessa, Henfil, Paulo Francis, Fausto Wolff e Sérgio Augusto. Além disso, teve colaborações de Glauber Rocha, Vinicius de Moraes, Caetano Veloso, Chico Buarque, entre outros.
No começo, a proposta era ser um hebdomadário irreverente com espaço, principalmente, para temas relacionados a comportamento. O tom político cresceu junto com a repressão da ditadura, e o jornal passou a ser uma voz importante no cenário de ruptura democrática. ;Foi uma catarse nacional que surpreendeu até nós, uma coisa surpreendente. O Jaguar conta que no início queria tirar 14 mil exemplares, e mesmo assim acabou. No número 30, já vendia 200 mil, mais que Veja e Cruzeiro. Foi um fenômeno extraordinário. As pessoas ficavam esperando;, lembra Sérgio Augusto, que começou a escrever no jornal a partir do nono exemplar e passou uma década na redação.
Para Augusto, o Pasquim pegou porque era irreverente e escrachado. ;Porque os jornais estavam muito presos, tinha uma dupla censura. A grande imprensa não só se sentia meio culpada por ter sido a favor do golpe, mas tinha interesses muito maiores que nosso jornal. O Pasquim era um franco-atirador. Ele começou a fazer um deboche do regime militar e as pessoas se deliciavam com aquilo;, conta.
Acervo centenário
A hemeroteca digital da BN guarda um imenso acervo de periódicos publicados no Brasil e fora do país desde o século 18. São mais de 20 milhões de páginas disponíveis gratuitamente para pesquisa, um conjunto precioso que serve de fonte de pesquisa, mas também de curiosidades para quem gosta de história. ;Nossa ambição é digitalizar todos os jornais publicados na história da imprensa que estão em domínio público, então O Pasquim é um passo importante, porque que fez história. Nossa luta é sensibilizar os donos dos títulos (que ainda não estão em domínio público) a nos deixarem fazer isso;, explica Joaquim Marçal, coordenador da BN Digital.
Hoje, a hemeroteca conta com mais de 7 mil títulos, entre eles alguns mais recentes que fizeram a história do jornalismo brasileiro, como as revistas Manchete, Realidade e Cruzeiro. Nem todas as coleções estão completas, como a do Pasquim, mas é um volume considerável. O acervo também inclui os dois jornais mais antigos do país, o Correio Braziliense, impresso em Londres a partir de 1808 e fundado por Hipólito José da Costa, e a Gazeta do Rio de Janeiro, considerado o primeiro jornal impresso no Brasil, na Impressão régia, única autorizada a rodar periódicos quando a família real se transferiu de Portugal para a colônia. ;Temos alguns outros mais antigos, mas que eram editados em outro lugar;, avisa Vinicius Martins, coordenador de projetos da BN Digital.