A escritora venezuelana Karina Sainz Borgo mora e trabalha em Madri, na Espanha, desde 2006. Jornalista de formação, ela acompanha com apreensão a situação política e social de seu país, cuja crise continua crescente.
"Acredito que só em 20 anos teremos alguma esperança de recuperação", comenta ela ao jornal O Estado de S. Paulo, em entrevista por telefone.
Karina estará próxima de seu país na próxima semana, quando será uma das principais convidadas da 17ª Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, que será realizada entre os dias 10 e 14, na cidade fluminense. Ela vai revelar a visão de seu país que inspirou seu primeiro romance, Noite em Caracas, publicado aqui pela Intrínseca.
Trata-se da dolorosa trajetória de Adelaida Falcón, jovem cujo futuro promissor é apagado com a morte da mãe, vítima de uma doença que ainda lhe consumiu as últimas economias. Ao retornar do enterro, ela descobre que sua casa foi tomada por um grupo de mulheres ligadas ao movimento revolucionário. E, ao buscar ajuda com a vizinha, conhecida como "a filha espanhola", ela a encontra morta.
A desintegração da vida de Adelaida coincide com o despedaçamento de seu país - da mesma forma que ela é obrigada a se adaptar à sucessão de desgraças, a Venezuela é um país que também luta pela sobrevivência.
Quando você visitou a Venezuela pela última vez?
Faz tempo, entre 2012 e 2013, quando Hugo Chávez ainda estava vivo. Já era uma situação complicada, mas, com o passar dos anos, só piorou. Mesmo à distância, acompanho o sofrimento dos venezuelanos. Tenho amigos jornalistas que me detalham o drama das pessoas. E o mais terrível é que essa situação extrapolou fronteiras e já chegou a países como o Brasil, que recebe quem busca um local melhor para viver. É um drama repartido.
O livro originalmente se chama La Hija de la Española, ou seja, a Filha da
Espanhola. O que você pensa sobre o título brasileiro, Noite em Caracas?
Talvez reflita melhor a atualidade de seu país?
Sim, gostei desse título, é mais crítico se pensarmos no agravamento da crise venezuelana. Também serve como ótima metáfora para a precária situação da democracia, se pensarmos que a escuridão da noite é propícia para se esconder coisas ou encobrir ações ilícitas.
A protagonista do romance se assemelha muito a você. Em algum sentido, o livro serviu como catarse para você?
Em vários sentidos, sim. Adelaida sofre várias perdas pessoais quando deveria estar no auge de sua carreira como editora. Ela vive em um país que não a permite progredir. Tenho recordações dessa dificuldade, pois a classe média foi a mais atingida pelas ações do governo. O que é concebido como exercício da democracia hoje na Venezuela implica em castigar a classe média. Isso se tornou uma metáfora sobre como se destruir um país. E, sim, é catártico no sentido de exemplificar minha busca por uma redenção - a aspiração da beleza é também um ato de resistência.
Gostaria que você falasse sobre a mãe da protagonista, também chamada Adelaida.
Novamente, trata-se de uma metáfora política ao mostrar como maternidade e linguagem estão próximas: Adelaida perde a mãe, vitimada por uma doença que ainda lhe arrancou o que restava de dinheiro, e é como se ela perdesse também sua cidadania.
E as artes em geral - e a literatura em particular - são as primeiras vítimas em um regime autoritário, não?
Sem dúvida. A língua é a primeira vítima de uma ditadura, pois transmite emoção e razão, o que nem sempre é bem aceito. A palavra torna-se estigmatizada e a memória torna-se perigosa. Os governantes buscam um termo, uma expressão para identificar o inimigo e atacá-lo até derrotá-lo sentimentalmente. Isso é decisivo na construção de uma história.
Você acredita que essa situação na Venezuela vai perdurar até quando?
Acredito que precisaremos de, pelo menos, 20 anos para recuperarmos o que foi perdido. Isso se a reconstrução começasse agora. A Venezuela é hoje um país depauperado, com mais de 2 mil presos políticos, com pessoas sem acesso a dinheiro, a medicamentos, à comida mesmo. E sob o jugo de um governo totalitário que está em guerra contra a democracia. Assim, tento, a partir das minhas recordações, recuperar essa história perdida, mas sempre por meio de uma chave humana, alegórica.
Por falar em alegoria, vejo com muita simpatia o personagem de Santiago, amigo da protagonista, que acaba preso e torturado, apesar de seu brilhantismo.
Para mim, Santiago representa o futuro, é o país que não se realizou - que se esperava educado, brilhante, civilizado, mas que se perdeu. Santiago representa também a ambiguidade, pois tanto é vítima como assassino, no sentido do que fez ou deixou de fazer para se manter vivo. Gosto dessa ambivalência que, ao mesmo tempo, é cruel, pois o sobrevivente está aí ou porque fez algo que o ajudou, ou deixou de fazer algo, também útil para sua permanência. Seja o que for, um sentimento de culpa deve acompanhá-lo sempre.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.