Rubem Braga não gostava das crônicas de Clarice; comentava que ela era melhor ;em livro;. Quer dizer, nos contos e romances. A exceção, para Braga, era o texto lisérgico que ela escreveu sobre Brasília. Mas vejam a ironia: ele foi publicado no volume de contos completos organizado pelo biógrafo Benjamim Moser. Em contrapartida, a célebre crônica Felicidade clandestina também entrou nas antologias dos contos. E, neste sentido, a leitura de Todas as crônicas (Ed. Rocco), tijolaço de quase 700 páginas, nos convida a uma reavaliação do veredito emitido pelo mestre capixaba. Sem exagero, é uma nova Clarice Lispector que se revela e se desvela.
Na verdade, a própria Clarice esbravejava, mas também considerava a sua produção de crônica circunstancial e menor. No entanto, o gênio da escritora borbulhou nas páginas de jornais e revistas, de 1946 até o ano de sua morte, em 1977. A coletânea organizada por Pedro Karp Vasquez enfeixa textos divididos em três segmentos: o primeiro é o do Jornal do Brasil, o mais longo, correspondendo ao período entre agosto de 1967 e dezembro de 1973; o segundo é reservado à colaboração com outros veículos da imprensa carioca (O Jornal, Senhor, A Manhã, Joia, Mais e Última Hora); e o terceiro é o extraído do livro A legião estrangeira.
A produção do Jornal do Brasil havia sido reunida em A descoberta do mundo. No entanto, 64 textos ficaram fora. Ao todo, a edição atual apresenta mais de 120 textos inéditos das diversas fases. O catarpácio de quase 700 páginas pode meter medo à primeira mirada. Mas ele propõe uma magnífica aventura de leitura, que seduz do começo ao fim. A sua escrita tem uma fluência de água viva brotando das pedras. Ela capta situações, seres, atmosferas, animais e coisas na velocidade do instinto.
É possível encontrar um pouco de tudo que a liberdade da crônica permite: confissões, evocações, divagações, relatos de encontros em festas (com Caetano Veloso e Guimarães Rosa), epifanias, perfis de escritores e de artistas (Rubem Braga, Nelson Rodrigues, Antonio Callado, Gabriel García Marquez, Lúcio Cardoso, Jorge Luís Borges, Iberê Camargo, Djanira, Burle Marx).
Clarice ficou atormentada ao receber o convite do jornalista Alberto Dines para escrever crônica semanal no Jornal do Brasil, sua colaboração mais contínua e regular. Discutiu bastante a condição de cronista: ;Uma pessoa me contou que Rubem Braga disse que eu só era boa nos livros, que não fazia crônica bem. É verdade, Rubem? Rubem, eu faço o que posso. Você pode mais, mas não deve exigir que os outros possam. Faço crônicas humildemente, Rubem. Não tenho pretensões;.
Ser mais leve
Ela sempre se divide em tensões dramáticas. Ficava satisfeita quando recebia cartas dos leitores. Ao mesmo tempo, sentia-se exposta, angustiada de desvelar a intimidade mais secreta. Aprendeu que ser cronista é desnudar a alma.
Clarice começou vacilante em face do ideal do cronista como autor de textos leves para entreter os leitores. Sentia-se incomodada com a função: ;Sei que não sou, mas tenho meditado ligeiramente no assunto. Na verdade eu deveria conversar a respeito com Rubem Braga, que foi o inventor da crônica. Ser mais leve só porque isto é uma coluna ou uma crônica. Divertir? Fazer passar uns minutos de leitura? E outra coisa: nos meus livros quero profundamente a comunicação profunda comigo e com o leitor;.
Mas, aos poucos, sem perceber, Clarice vai cavando o seu lugar. Não é o de Rubem Braga, o de Cecília Meireles, o de Nelson Rodrigues ou o de Vinicius de Moraes. O estilo que inventa é clariciano, fundado nas epifanias que irrompem ao correr da pena. A liberdade de Clarice entra em sintonia com a da crônica: ;Sei que o que escrevo aqui não se pode chamar de crônica nem de coluna nem de artigo. Mas sei que hoje é um grito. Um grito! De cansaço.;
Nem sempre ela respeita o princípio da leveza requerida pela crônica publicada no papel efêmero do jornal. E, com frequência, ela reflete sobre o processo de criação. Ela diz coisas lindas sobre o ato de escrever, que, para ela, é uma ação espiritual: ;Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada;.
Com seus radares poderosos, ela sente no corpo a pulsação da primavera, reverencia Sérgio Porto depois da morte do humorista, entrevista Pablo Neruda, fala sobre a experiência de mirar-se no espelho ou perfurmar-se: ;Já falei do perfume de jasmim? Já falei do cheiro do mar. A terra é perfumada. E eu me perfumo para intensificar o que sou. Por isso não posso usar perfumes que me contrariam. Perfumar-se é uma sabedoria instintiva;.
Retrato estilhaçado
Ao longo da leitura, forma-se um retrato estilhaçado de Clarice, como se fizesse parte de um quebra-cabeças infinito. A escritora, a cronista, a mãe, a mulher cotidiana, a transcendente, a solitária e a solidária. Apesar de todas as revelações, ela permanece enigmática. Como disse, a revelação de um mistério é sempre outro mistério.
Clarice declara que nasceu para três coisas: amor, escrever e ser mãe. O amor ao outro é tão amplo que inclui até perdão para si mesma, com o que sobra. As três coisas são tão importantes para ela que a vida é curta para tanto. ;Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca;.
Diferentemente de muitos outras artistas, ela não via as três facetas como incompatíveis. Se tivesse de escolher entre a literatura e a maternidade, optaria deliberadamente por ser mãe. Escrevia sempre à máquina na frente dos dois filhos e atendia quando eles solicitavam atenção.
Embora considere escrever uma atividade essencial, alerta para a circunstância de que pode ser abandonada pela inspiração ou a motivação. Em contrapartida, o amor seria infinito: ;Ao passo que amar eu posso até a hora de morrer. Amar não acaba. É como se o mundo estivesse à minha espera. E eu vou ao encontro do que me espera;. É uma sabedoria que ela arranca diretamente da experiência, sem intermediários: ;Quando o amor é grande demais, torna-se inútil: já não é mais aplicável, e nem a pessoa amada tem a capacidade de receber tanto;.
Ela viajou até o Egito e mirou a esfinge por alguns segundos. O resultado não poderia ser diferente: ;Vi a Esfinge. Não a decifrei. Mas ela também não me decifrou. Encaramo-nos de igual para igual. Ela me aceitou, eu a aceitei. Cada uma com o seu mistério;.