Numa linha diversa da que colocou Allan Kardec, num primeiro momento ressabiado em relação ao espiritismo, o ator Leonardo Medeiros tem convicções da atualidade de temas tratados em Kardec (filme que ele estrela, sob direção de Wagner de Assis). ;O filme começa com a discussão do ensino laico! Aliás, não houve forçação de barra com relação às abordagens ligadas à liberdade religiosa e de expressão. É impressionante, sentamos para assistir e estão lá as questões muito presentes. Fiquei muito impressionado, quando assisti ao filme e vi como ele abriu, com discussão bem atual;, comenta o ator, aos 54 anos. Medeiros tinha 53 anos quando filmou parte da vida do francês que, na vida real, na mesma idade, deu início aos estudos e pesquisas capazes de embasar a doutrina espírita que ele codificou.
;No filme, nós trabalhamos com fatos históricos. Há a biografia escrita por Marcel Souto Maior, que é jornalística, nunca sendo doutrinária. Pelos eventos e pelas reações do Kardec, a gente consegue intuir coisas. Mas não tem nenhum documento, por exemplo, que diga como ele era com a família, que fale da relação dele como os amigos, com a mulher dele;, observa o ator. Seria como interpretar Cristo? ;Sim, num sentido. Ninguém esteve lá para comprovar exatamente o que era, como foi. Você faz ilações do tipo ;Cristo era um cara caridoso;. Na personalidade, há uma lacuna na documentação; aí é que entra o trabalho do ator. A gente respeita no filme a história do Kardec, os fatos estão sempre lá. Daí, construí seu comportamento;, explica o ator de novelas como O Rico e o Lázaro e dos longas O vendedor de sonhos e Lavoura arcaica.
Apelo
A meta, cultivada por Leonardo Medeiros, de ver o filme assistido por muitos, começa a despontar como realidade: no fim de semana da estreia, nas bilheterias o longa foi o quarto mais assistido, tendo acumulado lucro superior a R$ 4,5 milhões. ;O filme tem um apelo a mais por tratar de um tema muito interessante. Brasileiro é um povo solidário, e o espiritismo, não só o kardecista, faz parte da nossa cultura. Há uma carência muito grande do público por um cinema que traga elementos místicos. Não que o filme seja místico, mas ele apresenta uma perspectiva de uma doutrina. É importante, para o público em geral, lembrar que não é um filme sensacionalista;, defende.
Sem iconografia farta de Kardec ; ;o que temos é apenas uma foto;, o ator detalha a sondagem feita para chegar ao personagem. ;Tem uma imagem de daguerreótipo. O cara senta e tem que ficar meia hora posando, para ter a foto. A gente vê a figura, mas não sabe bem quem Kardec é: depois de meia hora, se vê a imagem do cara sério, sisudo, e todas as ilustrações que se tem dele são derivadas desta imagem. Vem a intuição de o cara estar chateado, por não poder se mexer. Nem considerei aquilo como subsídio. Mesmo assim, é a imagem que todo mundo conhece;, conta o intérprete.
A análise de pontos de tensão de Kardec, no queixo, e da ;pança;, resultou na elaboração física para a tela. ;Há uma maneira severa de olhar. A princípio, pensava que eu não teria nada a ver com Kardec. Na caracterização, não usei nenhuma prótese, nenhum recurso de adição. Projetei o tórax para a frente, para ficar com uma barriga. Não tem silicone, nem nada. Fiquei feliz com o trabalho: nem eu me reconheço;, diz o ator. Uma dose de ceticismo, por sinal, é compartilhada com Kardec. ;Acho que vem do fato de a minha família ser muito espírita. Vivi o espiritismo intensamente dentro de casa: nunca me aprofundei muito; nunca me interessei em estudar, tinha uma relação algo superficial: não tinha lido livros do Kardec;, conta o ator.
Cientista
Leonardo Medeiros admite que valoriza demais a determinação de Kardec que, na sua concepção, assume um traçado de cientista: ;Diante de uma hipótese ou de um evento natural, ele se dispõe a pesquisar e a saber do que se trata. Eu, por exemplo, não tenho essa índole, então fiquei mais na minha;. O ator admite que se sente mexido com a exibição do longa, por vínculos familiares, além de crenças e buscas pessoais. Entre as abordagens ligadas à atualização de temas, por parte da produção, o ator comenta que houve um endosso na relevância da representação da mulher de Kardec, a professora Amélie Gabrielle Boudet. ;O diretor achou, desde o começo, que ela era uma figura a ser recuperada. Há o debate sério sobre a presença da mulher. Gabi estava ao lado de Kardec, o tempo todo, numa época em que a mulher era relegada ao segundo plano, e ponto final ; não havia discussão. A gente sabe que ela ajudou nas pesquisas;, explica.
Obstáculos
As recentes preocupações de Medeiros têm encampado a profissão, com a ;parada; no mercado do audiovisual e com o esforço de tentar reabrir seu teatro paulistano. ;Estamos em tempos sombrios, com os projetos sofrendo uma parada. Os profissionais da área estão um tanto desesperados. Estou num esforço monumental para ver se consigo reabrir meu teatro, fechado no ano passado, por questões burocráticas. Há muitos obstáculos para a reabertura, por vivemos numa época em que criminalizaram a nossa atividade. Os donos do dinheiro têm muito receio de se envolver com cultura;, avalia.
Dinheiro e poder, aliás, fazem pensar num universo que teima em acompanhar os recentes personagens de Medeiros no audiovisual: Marcelo Odebrecht foi representado por ele em Polícia Federal: a lei é para todos, e, em O paciente (baseado no caso da morte de Tancredo Neves), foi um médico. Além disso, vieram as breves participações em séries como O mecanismo e Carcereiros.
;Existe uma ideia meio romantizada de que temos opções. Que a gente pode escolher... Mas não tem, não tem: vivemos num sistema de produção muito precário. Um ator que consegue viver do seu trabalho, como eu faço, é muito raro. É muita sorte minha: a maioria avassaladora não tem como fazer isso;, explica. O momento atual, com nosso cenário político, pulsa, mirrado, na avaliação de Medeiros. ;Ando há um bom tempo muito triste: a minha geração cresceu escutando que o Brasil era uma país para daqui a 50 anos. Passaram os 50 anos, e continua sendo para daqui a 50 anos. Dá um desânimo, né?!”.
; Os destaques, no cinema
Cabra-cega
Foi meu primeiro longa como protagonista. Deu-me prêmio de ator em Brasília e foi muito importante para mim. Posso até dizer que a minha carreira começou mesmo com ele; em termos de reconhecimento. Tive ainda, em Brasília, prêmios de ator com o curta A vida ao lado e o longa Lavoura arcaica (em papel coadjuvante).
Budapeste
Teve direção do Walter Carvalho. Achei ele meio injustiçado: não foi muito assistido, mas é um belíssimo filme. Enquanto lia o livro, só via o Chico ; com a narrativa em primeira pessoa e tal. Falei: ;Como é que vou fazer o Chico Buarque?!’. O processo foi parecido com o do Kardec. Ainda bem que o filme teve o aval dele.
Feliz Natal
É um percurso com um grande amigo e diretor (Selton Mello), e traz personagem muito presente na dramaturgia do Selton. O trabalho foi muito bonito, e acho que traz, em si, muitos ecos do Lavoura arcaica, que nós fizemos juntos.