Adriana Izel
postado em 26/05/2019 06:10
Em abril de 1994, o grupo pernambuco Chico Science & Nação Zumbi colocou no mercado o álbum Da lama ao caos, lançado em duas versões, uma em LP com cinco faixas no lado A e seis no lado B, e outra em CD, com 14 músicas. Em um primeiro momento, o disco causou estranheza. A gravadora não sabia muito bem o que fazer com a banda ; que não soava como os roqueiros do momento ;, as rádios estavam desinteressadas na divulgação das músicas, e as vendas estavam baixas ; apenas 10 mil LPs e CDs haviam sido vendidos, numa época em que os artistas mais populares alcançavam a vendagem de um milhão de exemplares. Apesar desses ;problemas iniciais;, Da lama ao caos conseguiu, com o passar dos anos, se tornar reconhecido e cultuado como um clássico.
Mas como um disco que começou criticado e colocado para escanteio virou o jogo? Esse é um dos pontos do livro escrito pelo crítico musical José Teles, que acompanhou o surgimento do movimento manguebeat e, consequentemente, o início da carreira de Chico Science & Nação Zumbi no Recife, quando atuava no Jornal do Commercio. Intitulada Da lama ao caos: Que som é esse que vem de Pernambuco?, a obra integra a coleção Discos da Música Brasileira, série de e-books sobre álbuns importantes da música brasileira sob a organização do jornalista Lauro Lisboa Garcia.
Para retratar e contar essa história, José Teles se valeu da própria memória, dos materiais da época e ainda de entrevistas feitas com músicos, produtores, empresários, diretores de gravadora. Entre as apontadas como mais importantes pelo jornalista estão as com Liminha, produtor do disco, e Goretti França, irmã de Chico Science. A dupla foi capaz de esclarecer pontos relevantes da narrativa. Liminha deixou o autor ouvir versões originais, detalhou as gravações e revelou as sutilezas do álbum. Já Goretti, trouxe a intimidade de Science, autor de praticamente todas as faixas de Da lama ao caos.
Disponível apenas em formato e-book, o material ainda retrata o movimento manguebeat e serve para esclarecer alguns mitos sobre a figura de Chico Science, como a tal influência do médico e ativista pernambucano Josué de Castro no músico, que foi citado em músicas escritas por Science. ;Particularmente, acho que esclareci de vez uma ligação que se fantasiou da influência de Josué de Castro em Chico Science, que foi praticamente nenhuma. Ele soube de Josué através de mim, numa conversa muito rápida;, revela.
Ponto a ponto // José Teles
O convite
Lauro Garcia me fez o convite para participar da coleção. Sou meio compulsivo pra escrever. O que me convidam eu aceito. E neste não tive nem dúvidas, porque é um assunto que vivi enquanto ele acontecia... Já escrevi muito sobre o assunto, convivi com Chico Science, e a banda, quando eles viviam no Recife. Como jornalista de música, já com 30 anos de carreira, tenho um arquivo muito grande, da música pernambucana principalmente. Por coincidência, na época do convite, uma amiga estava escaneando meu material. Aí facilitou muito. Com tantos anos, muita coisa ficou mais clara, conversei com pessoas que foram fundamentais para a história, com as quais não conversei quando escrevi o livro Do frevo ao manguebeat, para a Editora 34, em 2000. Esse livro hoje é referência sobre a música pernambucana, mas tem muitos pecadilhos de informação.
Clássicos recentes
Na primeira metade dos anos 1970, houve uma cena psicodélica em Pernambuco que só ficaria conhecida no Brasil quando lancei o livro Do frevo ao manguebeat. Dediquei um capítulo do livro a essa cena, que era muito louca, pois gravaram-se muitos discos totalmente sem potencial comercial, experimentais. Hoje são considerados clássicos, mas o status é recente. Paêbirú, de Lula Côrtes e Zé Ramalho, hoje é considerado um dos discos mais caros do Brasil. Esses discos não apareceram na época porque não houve divulgação no Sudeste, senão teriam sido bem-recebidos como foram os do manguebeat. O Da lama ao caos é um disco original, com boas letras, ótimas músicas, de arranjos engenhosos, uma coisa totalmente nova. Teve um respaldo grande da imprensa local, e daí disseminou-se pelo resto do país. Foi lançado por uma grande gravadora. Enfim, além de um grande disco teve uma boa divulgação.
Revisão do passado
Foi bem bacana, porque o vi com o distanciamento de 25 anos. Passei a entender bem mais o que Chico quis passar no disco. Entrevistei Liminha o produtor, no mesmo estúdio onde o disco foi gravado. Ele foi muito gentil em tocar a master pra gente, detalhar a gravação do álbum, mostrar sutilezas que a gente não saca escutando o disco. A irmã de Chico, Goretti, explicou trechos da música que são coisas simples, do cotidiano de Chico em Rio Doce, o bairro de periferia de Olinda, onde a família morava. Particularmente, acho que esclareci de vez uma ligação que se fantasiou da influência de Josué de Castro em Chico Science, que foi praticamente nenhuma. Ele soube de Josué através de mim, numa conversa muito rápida. Chico tinha uma imaginação fértil. Logo depois ele faria uma canção em que colocou o nome de Josué, fez uma ligação entre o médico cientista e mangues e caranguejos, a partir do título de um livro Homens e caranguejos, que lhe mostrei na minha casa. Daí sugiram mil conjecturas das influências, dissertações, teses. Um tempo depois, não sei quanto, Chico comprou o Geografia da fome (livro de Josué de Castro publicado em 1946).
O disco
O álbum é conceitual, as músicas se interligam, falam do Recife pobre, da periferia, dos bandidos lendários dos anos 1970, emprega manifestações da cultura popular pernambucana. Mas escolheria Maracatu de tiro certeiro, de Chico e Jorge du Peixe. Ele trouxe novas informações para a música brasileira, apontou novos rumos. E evoluiu muito do primeiro para o segundo álbum. E a Chico Science & Nação Zumbi provou que não era grupo de um disco só. O seguinte, Afrociberdelia foi ainda mais elogiado.
De lama ao caos: Que som é esse que vem de Pernambuco?
De José Teles. Organização de Lauro Lisboa Garcia. Edições Sesc São Paulo, 136 páginas. Preço: R$ 15 (e-book)