Ricardo Daehn
postado em 16/04/2019 07:37
Sessões especiais com duas fitas inéditas de Julio Bressane (Nitzsche Sils Maria e Sedução da carne), um universo de 126 filmes extraídos de um montante 773 inscritos, e o frescor de um evento (a Mostra do Filme Livre) que chega à maioridade, com uma plataforma extremamente independente. A partir de hoje (16/04, terça), no CCBB, com entrada franca, as estruturas de poder vertical entram num esquadro crítico formado pela contestação fundamentada por diretores brasileiros das mais diversas origens. Quinta-feira (a partir das 18h30), a vez será dos cineastas brasilienses Rafaela Camelo, Tiago de Aragão, Amanda Devulsky e Pedro Garcia exibirem as mais recentes obras.
Hoje, em sessão às 19h30, a reunião de quatro curtas-metragem exemplifica o poder de fogo dos discursos criativos de diretores como William Alves e o cinema que cultiva em Taguatinga. A praga do cinema brasileiro traz a participação do enigmático Zé do Caixão para revelar o poder de profecia de muitas obras do cinema nacional. A tentativa de enquadrar e categorizar pessoas e atitudes dissonantes da maioria nutre outro título apresentado hoje: Polis, assinado por Rafael Batista.
Personalidades contestadoras, como o diretor mineiro Sylvio Lanna (celebrado em Travelling adiante, de Lucio Branco) e a anárquica escritora Hilda Hilst (do longa Hilda Hilst pede passagem) também integram o habitat da Mostra do Filme Livre. Muito do conteúdo da mostra passou pelo crivo do idealizador do evento Guilherme Whitaker, um dos quatro curadores. Ele avalia que, nesta última seleção, houve muitos filmes com uso de arquivos de família, VHS, da relação entre a intimidade e as questões do espaço público. E completa: ;Da mesma maneira, a problematização do cinema, da montagem e o uso da imagens de arquivo são questões que aparecem e que acabaram
por estruturar algumas das programações;.
A falta de amarras nas narrativas e estruturas dos filmes revela surpresas muito positivas, como é o caso da fita cearense (a ser mostrada dia 20, às 19h) Memória do subsolo ou o homem que cavou até encontrar uma redoma, criada por Felipe Kardozo. Verdadeiro desabafo íntimo surge do apagar de medidas e avanços proposto pelos novos tempos na política. Apagar destinos, pessoas com pensamentos opostos, a promoção da falta de diálogo e questões pulsantes para minorias anuladas formam o corpo da trama.
Dia 21, às 17h, o público brasiliense poderá acompanhar o contestador cinema da pernambucana Lia Letícia, à frente do curta Thinya. A diretora coloca em xeque a perspectiva eurocêntrica, ao dar voz para uma indígena inconformada com valores e atitudes da elite branca. Tudo é formulado com engenhosidade extrema de discurso e ótimos artifícios de montagem.
Cinema especial
Morto em 2016, o realizador e repórter pernambucano Geneton Moraes Neto é relembrado na mostra, com programação especial. ;Ele fez um cinema muito afinado com as questões políticas de então (anos 1970/1980), e o fez usando o formato possível numa época pré-VHS, mesmo sendo o Super8 um formato caro e tecnicamente complexo de usar. É muito difícil conseguir realizar filmes em Super8 que tenham uma fotografia e som bem-feitos, por conta de seu tamanho reduzido, uma espécie de minicinema. Ele obteve este raro primor técnico e estético;, explica Whitaker.
Hoje, na tela do CCBB será apresentado Funeral para a década de brancas nuvens, feito há 40 anos. Na tela, a fim de contestar o vácuo de inteligência na década de 1970, ele alinha Luiz Gonzaga, Roberto Carlos, Richard Nixon, chegando até a figura do Papa. ;Ele encabeça filmes marcados por uma profunda indignação, um libelo contra a manipulação da história e das imagens ditas oficiais, e contra os poderes políticos instituídos no país;, pontua o curador. Amanhã, com debate, a partir das 18h30, serão mostrados nove filmes de Geneton. Esses onze aí ; Um filme panfletário a favor do futebol, um dos filmes, reforça a visão do futebol como diversão e alegria para o povo.
Três perguntas // Guilherme Whitaker, curador da mostra
Homenagear Geneton Moraes Neto traz que elementos que atravessam pontualmente a obra dele?
Geneton fez um cinema muito afinado com as questões políticas de então (anos 70/80), e o fez usando o formato possível numa época pré-VHSs, mesmo sendo o Super8 um formato caro e tecnicamente complexo de usar. É muito difícil conseguir realizar filmes em Super8 que tenham uma fotografia e som bem feitos, por conta de seu tamanho reduzido, uma espécie de mini-cinema. Além de conseguir este raro primor técnico e estético, seus filmes também são permeados por uma ironia e um certo pessimismo, além de um tom incendiário, especialmente nos textos (a maioria escrito por ele ou por Jomard Muniz de Brito, o qual também colabora como ator e narrador nos filmes A Flor de Lácio é Vadia (1978) e O Coração do Cinema (1983). São filmes marcados por uma profunda indignação, um libelo contra a manipulação da história e das imagens ditas ;oficiais;, e contra os poderes políticos instituídos no pais ;O Brasil da Rede Globo não confere com o original;, grita Jomard Muniz de Brito em O Coração do Cinema
O público da mostra, tradicionalmente, deve estar predisposto a embarcar em abstrações. Quais os títulos que mais desafiam a lógica, trazendo abordagem de múltipla interpretação?
Pensar o público da MFL é uma questão difícil, porque trata-se de uma mostra realizada em um centro cultural onde há diversos tipos de atividades, nem todas elas voltadas ao que é pensado, na norma, como abstração. Nem a MFL em si se propõe exatamente à exibição de filmes especificamente abstratos. Quando dialogamos com os filmes, em termos de curadoria, para desenhar as sessões, a partir dos filmes inscritos e selecionados, pensamos sempre em como aquelas obras tocam o espectro da liberdade de criação, no cinema, no diálogo com as questões estéticas e políticas de uma maneira geral. Assim, como os filmes são apresentados em sessões, a experiência de cada um deles se dilui na experiência da sessão, e numa instância maior, da própria MFL naquele momento, então é difícil citar um título ou outro que sejam mais abstratos, porque sua experiência estética, de sentido, vai ser conjugada com outros filmes, debates, encontros e espaços.
Quando olhados em bloco, é possível notar que os filmes tragam questionamentos e temas afunilados? Quais as principais questões levantadas, em comum, por alguns títulos?
Sim, de alguma forma, os filmes a cada ano versam sobre questões ou formas, onde é possível ver diálogos interessantes, montar sessões a partir de abordagens em comum ou por temáticas, mas aqui entendidas de maneira mais ampliada, talvez, como recortes. A sessão Territórios, seria um exemplo, na medida em que abriga filmes que tenham uma relação entre cinema e política. Em geral, no entanto, essas possibilidades de agrupamento surgem e podem ser ampliadas e transformadas, extintas, criadas ou renovadas, a depender dos filmes que chegam para a apreciação da curadoria, a cada ano. Nesta última seleção, tivemos muitos filmes com uso de arquivos de família, VHS, da relação entre a intimidade e as questões do espaço público. Da mesma maneira, a problematização do cinema, da montagem e o uso da imagens de arquivo são questões que aparecem e que acabaram por estruturar, por exemplo, o espectro de uma sessão Autorias, cujos títulos, cada um a sua maneira se debruçam sobre esta forma de narrar a história. Assim como temos uma das sessões Territórios cujos filmes, de realizadores indígenas, permitem abrir espaços de discussão da forma de expressividade, identidades, de subjetividades e sensibilidades indígenas.
SERVIÇO
Mostra do Filme Livre
De hoje (16/04, terça) a 12 de maio, no CCBB. Confira programação no roteiro. Entrada gratuita com ingressos distribuídos na bilheteria a partir de uma hora antes de cada sessão. Confira a classificação indicativa de cada filme no roteiro.