Nahima Maciel
postado em 09/04/2019 07:10
Mary del Priore é uma das autoras mais produtivas quando se trata de história do Brasil. Depois de concluir os dois primeiros volumes da série Histórias da gente brasileira, iniciada em 2016, de publicar um livro de documentos históricos e outro sobre espiritismo no Brasil colônia, a historiadora lança agora a biografia de José Bonifácio. Sobre ele, mas também sobre as relações afetivas e o lugar do amor na história da sociedade brasileira, ela vai falar hoje (09/04, terça), como convidada do ciclo Diálogos contemporâneos. Evento será às 19h, no Teatro dos Bancários (EQS 314/315).
A produtividade, Mary afirma, foi planejada. ;Tenho o privilégio de morar em uma cidade muito pequenina, sem atrativo cultural que me distraia de minha biblioteca. É na região rural de Teresópolis, então o tempo que tenho para ler e pesquisar é muito grande. Quando deixei a USP, foi para dar conta desse projeto de estar publicando e aproximando o leitor da história do Brasil;, conta a ex-professora da Universidade de São Paulo. E nessa seara, ela gosta particularmente das biografias, especialmente se os biografados são figuras com um pé no Brasil e outro na Europa e se, sobre eles, se construiu uma certa mitologia. ;Isso sempre possibilita ver o Brasil de fora e ver como os brasileiros veem o Brasil de fora. E esse é o caso do José Bonifácio, que viveu quase 30 anos fora do país;, diz.
Publicado pela Sextante, As vidas de José Bonifácio mergulha na tentativa de compreender as nuances da personalidade desse personagem histórico. Megalomaníaco, difícil e nada conciliador, Bonifácio intrigou Mary. Estudado como o patrono da independência do Brasil, desafeto de dom Pedro I depois que passou para a oposição na Assembleia e tutor dos filhos do imperador quando este voltou para a Europa, Bonifácio foi figura controversa e cheia de contradições.
Deixou o Brasil aos 20 anos para estudar na Universidade de Coimbra, como fazia a elite intelectual da colônia. De família que havia sido próspera, mas que amargava em dificuldades, foi estudar filosofia natural com a ambição de se tornar um cientista reconhecido na Europa. No entanto, nunca passou de um medíocre desconhecido. ;A ciência está na moda na Europa da época. Ele meio que desembarca no Vale do Silício, mas não funda o Google. Continua sendo um cientista brasileiro com passagem pela academia de Portugal, que não é muito grande. O máximo que ele consegue é ter contato com funcionários portugueses fora de Portugal. Ele volta e vem revestido de certo brilho, porque viajou, mas isso não dá a ele o dinheiro que gostaria. E esse é o segundo momento de frustração para ele;, conta Mary.
A frustração fez de Bonifácio um homem autoritário. De volta ao Brasil, se aproximou de Dom Pedro I, participou ativamente do processo de independência, mas acabou por se desentender com o príncipe regente ao assumir a oposição na Assembleia. Foi enviado ao exílio por seis anos antes de retornar para se tornar, em uma reviravolta surpreendente, tutor dos filhos do imperador. Virou uma figura detestada por muitos, violenta, que pagava para bater naqueles com quem mantinha alguma desavença, e extremamente ambiciosa. ;Tenho investido muito em humanizar o Bonifácio, mostrar o quanto sofreu, o quanto a vida dele foi difícil, o quanto se frustrou e como isso forjou o homem mandão. Os irmãos todos eram. Esse lado humano de irmãos, mal comparando com os três patetas, que se unem em uma agenda política, as pessoas desconhecem. Elas veem o JB como pairando sobre o país;, avisa Mary, ao lembrar como certos aspectos históricos refletem no Brasil de hoje. ;O livro procura mostrar esse aspecto mais psicológico do homem. Está na hora de desconstruir mitos. Porque, às vezes, a gente elege mitos e eles viram sapos.;
Mitos que podem, inclusive, ser um desserviço para a história. Mary lembra que o revisionismo proposto recentemente pelo presidente Jair Bolsonaro ao louvar o golpe de 1964 e dizer que o nazismo foi um movimento da esquerda pode ser perigoso. ;Negacionismos são criminosos. Eles não são só opiniões; mas, opiniões que recusam deliberadamente aceitar fatos históricos por razões inconfessadas e inconfessáveis;, diz Mary. ;Nesta época de ;verdades alternativas e fake news; e no contexto político mundial atual, tomar consciência do negacionismo é fundamental. Distorcer evidências históricas não faz bem a nenhum país que se queira democrático.;
; DUAS PERGUNTAS MARY DEL PRIORE
A que lugar o revisionismo histórico que nega o golpe de 64 e coloca o nazismo como movimento de esquerda pode levar o Brasil? Que consequência isso pode ter na nossa sociedade?
Vale lembrar que historiadores vêm estudando a ditadura ;civil e militar; brasileira, ou seja, que graças a milhares documentos, eles procuram explicar a participação da classe média, das elites, dos meios de comunicação, das igrejas e do empresariado no golpe. O objetivo é analisar de forma equilibrada o que se passou entre 64 e 85, evitando ;histórias oficiais; à direita ou à esquerda. Elas é que induzem a erros, fazendo crer na preeminência dos militares e ocultando a participação civil na ditadura. A história prevalecerá e se hoje, por razões políticas, há quem queira ignorá-la, é só uma questão de tempo, para que a sociedade entenda que estão surgindo evidências históricas esclarecedoras para a construção de nossa democracia.
Hoje, combinando o acesso à informação com a ineficiência das instituições educacionais brasileiras, devemos temer esse revisionismo?
Há muitos educadores tentando combinar eficiência tecnológica e conteúdos e partirá deles o cuidado com os programas de história que estão sendo ministrados. Professora universitária que sou, vejo muitos colegas preocupados com o tema e alertas para derrapagens de ambos os lados. Penso, contudo, que a educação não é só responsabilidade das instituições, mas da família. E sabemos que é na vida privada que se constrói aquilo que não se mostra publicamente: o racismo, a homofobia, o machismo, a violência. É a ela que devemos dar tanta atenção quanto à escola.