Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Com filme sobre trapalhão Mussum, diretora perpetua a imortalidade do humor

A diretora Susanna Lira acredita que Mussum seria dos poucos humoristas com estômago para lidar "com a situação na qual vivemos"

;Acho que todo o artista almeja este status de permanência;, comenta a diretora de cinema Susanna Lira, ao falar de Mussum, morto há 25 anos, e que ;continua este ser que até hoje faz piada com nossa cara;. À frente do documentário Mussum, um filme do cacildis (em cartaz), a cineasta não segreda que, tendo crescido como espectadora de Os Trapalhões, na tevê, e nas estreias de janeiro e julho, nos cinemas, sempre teve um preferido: ;Gostava muito mais do Mussum, por ele traz uma questão regional. Eu morava no subúrbio do Rio de Janeiro e aquele personagem me parecia muito mais familiar. Quanto a longevidade, até hoje, sempre que acontece alguma coisa, politicamente, aparece alguém fazendo referência ao estilo dele nos comentários;.

Orçado em menos de R$ 1 milhão, e demandando um ;trabalho arqueológico; na busca por imagens, o longa (coproduzido por Canal Brasil e Globo Filmes) consumiu quatro anos de trabalho e trouxe desafio de uma linguagem irônica, com abordagens sérias, como a do racismo, mas num nível de diversão. Arriscar, fugindo do ;formato confortável; de entrevistas e imagens de arquivo levou à adoção de referências como a de Ilha das flores (1989) e de um episódio de Atlanta.

;É muito difícil fazer um documentário de pessoa que já morreu ; todas as entrevistas já foram feitas. Além disso, o público que consome o personagem do Mussum, hoje, está acostumado com outra linguagem. Com relação ao público, sou militante do documentário, e insisto para que o filme seja visto nas salas de cinema. É uma luta muito difícil, mas trouxemos o projeto para uma rede de cinemas mais populares;, reforça a diretora.

Afirmação na música

Anos depois de reconhecido pela participação em musicais e nas chanchadas nacionais, foi o astro Grande Otelo quem atiçou o temperamento de Antônio Carlos Bernardes, ao chamá-lo de Mussum, em referência ao peixe escuro muçum. À época, Antônio, ;exímio músico; (como pontua a cineasta Susanna Lira), já integrava o conjunto Os Originais do Samba. ;A grande paixão dele era a música. Lá, nasceu o personagem feito pelo Antônio Carlos; dentro do samba, veio a maneira como se comunicava e dançava ; viria a ter tudo a ver com o humorista. Os Originais eram altamente sofisticados no samba. Eu descobri, fazendo o filme, a relevância internacional deles;, conta a documentarista;.

Imagens, inacessíveis dado o preço para integrarem o longa Mussum, um filme do cacildes de redes francesas e alemãs foram grandes surpresas para a diretora. Da Alemanha, ela pinçou uma cena do grupo Os Originais do Samba no Corcovado, em puro freestyle. ;Eles tiveram turnê pela Europa, regeram a Marília Pêra, cantaram com Elza Soares e com Jair Rodrigues ; eram a nata da MPB! Foram musicalmente arrojados e diferentes;, pontua Susanna. Entre as letras muito sofisticadas entoadas por Mussum, Susanna destaca Assassinaram o camarão e Esperanças perdidas. Torneiro mecânico, vale lembrar, que, entre os feitos, Mussum carregou o de ter criado o próprio reco-reco, forjado no metal. ;Ele ficou muito, muito triste de ter que abrir mão da música para continuar vivendo;, explica.

Explosão do bullying

A ponte popular que unia público ao humor de Os Trapalhões está registrada no longa. ;O grupo tinha em conta um acordo de bullying feito entre eles. Vinha tudo nas brincadeiras quanto à orientação sexual do outro, ao tamanho da orelha, ao fato de vir do Nordeste. Hoje, com a consciência humana, o humor evoluiu muito. Há bastante elementos capazes de ser elaborados e fazerem pessoas rirem;, observa Lira. Em suposição, a cineasta acredita que, nos dias de hoje, Mussum teria atualizado o discurso com relação às piadas racistas, respondendo a tudo com mais veemência. ;Fora do programa, ele jamais permitiu: chegava até mesmo às vias de fato, se alguém refizesse, no cotidiano, as piadas do programa. Acho que o Mussum estaria mais empoderado, hoje;, diz.

Depois de tanto estudar o humorista, Susanna acredita que ele seria dos poucos ;com estômago; para lidar ;com a situação na qual vivemos;. ;Ele teria um fígado resistente (risos). Acho que estaria afiado: ironizando o que estão fazendo com o povo brasileiro. Mussum tinha o poder de viver numa situação precária; levava a vida com muita ginga, tentando sobreviver;, comenta.

Morto, em 1994, diante de complicações cardíacas, Mussum trouxe o vínculo com o ;mé; (a cachaça) como algo para ;ser visto apenas no personagem;, nas palavras da diretora. Daí, descartar versões de que ele teria tido a morte ocasionada por cirrose. ;Isso é mentiroso; se tivesse sido, não teríamos o menor problema de colocar isso no filme. A relação com a bebida é um mito construido em torno dele ; é restrito ao personagem. Ninguém viu Mussum bêbado: ele bebia socialmente;, defende a diretora.

Responsabilidade

Alcoolismo não combinaria com o estilo de vida de Antônio Carlos Bernanrdes, que morreu aos 53 anos. Empregado pela Aeronáutica, por oito anos, criou um estilo de vida muito disciplinado. ;Ele manteve dois empregos, e era um pai presente com cinco filhos para sustentar. Quem chegasse, por exemplo, com cinco minutos de atraso num ensaio, tinha como resultado ele deixar de falar com essa pessoa;, pondera a cineasta.

Pai afetuoso, rigoroso e presente, como descrito pela diretora, o humorista ainda carrega méritos por ter alfabetizado a própria mãe, a empregada doméstica Malvina. E repassou para os filhos projetos de empreendedorismo de quem se aplica nos estudos. Augusto, o filho mais velho, se tornou advogado; Sandro se afirmou empresário, inclusive à frente de uma reconhecida marca de cerveja, enquanto Paula cursou pedagogia. Aos 25 anos, Mussunzinho, o mais novo, herdou o convívio das artes do pai, morto, quando ele tinha um ano de idade. ;Mussunzinho é, dos filhos, o que traz a saudades do pai com quem não pôde conviver;, conclui Susanna Lira.