Algo se passa com os artistas quando eles embarcam em uma residência. O termo, comum na medicina, tem mais ou menos o mesmo significado nas artes: passar um período em um ateliê-laboratório, compartilhado com outros artistas ou não, e fazer da experiência um combustível para a produção de uma obra construída a partir das vivências. Quando há mais de um artista, o resultado pode ser surpreendente. Por isso, vale ficar de olho no que estão produzindo 13 nomes de Brasília selecionados para duas residências.
Na Casa Niemeyer, um patrimônio cultural do Distrito Federal que hoje está anexado à Casa da Cultura da América Latina (CAL), 11 artistas selecionados pelo 2; Prêmio Vera Brant (2018) passaram as últimas semanas dividindo espaços e ideias no meio do cerrado. Em Planaltina, o baiano Shevan é o primeiro residente do Pé vermelho, misto de galeria e ateliê montado por João Angelini em uma casa com vista para a Praça São Sebastião.
Com 140 inscritos no ano passado, o Vera Brant selecionou 11 artistas para residência com acompanhamento de cinco curadores em Brasília, e uma para o Centro Espronceda, em Barcelona. O resultado poderá ser visto em exposição no Espaço Cultural Renato Russo, no final de abril. ;Estávamos preocupados em pensar em artistas que ainda não tinham espaço em galerias e grandes centros culturais. A intenção é direcionar esses artistas. E procuramos atender a todos os tipos de linguagem;, avisa Rogério Carvalho, um dos idealizadores do prêmio.
Durante as últimas semanas, os 11 artistas dormiram e trabalharam na casa projetada por Oscar Niemeyer que, um dia e por breve período, serviu de residência ao arquiteto. Segundo Carvalho, o espaço físico também influencia a produção dos artistas. ;Tem um vínculo que o espaço produz. Ele transforma. Vários trabalhos remetem, de alguma forma, à casa e ao deslocamento que ela provoca;, explica o curador.
Para João Angelini, o processo de troca em uma residência é excepcional. Ex-integrante do grupo EmpreZa, um dos mais bem-sucedidos coletivos de performance do Brasil, ele está acostumado ao diálogo e à produção coletiva. ;Venho, há muito tempo, num processo de troca em trabalhos coletivos e ficou nítido, para mim, como é rico o processo de acompanhar a pesquisa. A maneira como o outro produz, pensa e estuda instiga o trabalho autoral. Para mim, tem sido uma coisa muito preciosa. Essa é uma postura, um valor mesmo que tenho há muito tempo;, garante o artista, que acompanha o trabalho de Shevan há seis anos.
Arnaldo Saldanha, 38 anos
; A casa e a convivência com outros artistas têm sido essencial para a produção do fotógrafo. As relações entre presente e passado, as rupturas possíveis nessas ligações e o fato de ocupar um espaço que, na maior parte do tempo, não é habitado têm contribuído para a pesquisa: ;A residência é um momento de imersão artística, causa um impacto, os processos se misturam;, avisa.
Patrícia Teles, 32
; Molduras brancas rodeadas de luz, penduradas no teto da sala da Casa Niemeyer, são como fundos infinitos. Malevich fez o quadrado negro, Patrícia se inspirou para fazer um branco. A simplicidade do que pode vir a ser uma instalação lembra muito os traços retos e triviais da própria casa. Sensores de som, presença e até de batimentos cardíacos devem ser incorporados à obra, assim como uma performance da artista.
Fernanda Azou, 22
; Acostumada a trabalhar com pinturas em pequenos formatos, a artista ampliou a área de atuação de seu pincel desde o início da residência: agora, está pintando quadros grandes, uma orientação dos curadores, mas também um reflexo dos espaços da casa e da convivência com outros artistas. ;Comecei a perceber que o pequeno formato não cabe mais no trabalho. Estou exercitando bastante isso;, diz.
Capra Maia, 33
; Duas histórias familiares cujas trajetórias coincidem com a construção de Brasília motivaram os vídeos nos quais a artista tem trabalhado. As imagens foram captadas no cerrado, ao redor da casa, mas também no Plano Piloto. ;Fiquei pensando muito nessa questão da terra sendo dominada. O outro vídeo fala sobre histórias de minha mãe, então tenho essa ligação com histórias familiares;, explica Capra.
Gustavo Silvamaral, 23
; Estudos de cor que se transformam em instalações curiosas ganharam um tom monocromático durante a residência. ;A experiência coletiva me influenciou demais. É uma oportunidade de ouro, não tem como não ser tocado por isso;, diz Gustavo, que trabalha em uma instalação construída com ventiladores e sacos plásticos amarelos coletados durante a residência.
Silvie Eidam, 35 anos
; O crânio de boi que repousa na mesa de Amanda Naomi Yuki inspirou as pinturas de Silvie, assim como as texturas da luz artificial refletida nas plantas do jardim da casa durante o período noturno. Na tela, a própria artista aparece retratada em interações com o local. ;Estou assumindo mais a ideia do autorretrato;, revela, ao apontar que foi uma dica da curadora Graça Ramos, que integra o time de acompanhamento do prêmio.
Raissa Studart, 24 anos
; O interesse pela casa enquanto habitat faz parte da pesquisa de Raissa há algum tempo, por isso fez todo sentido para ela trabalhar nos espaços interiores propostos pelo Prêmio Vera Brant. A maneira como os espaços domésticos são ocupados, o trânsito entre eles e o diálogo com os elementos externos estão no trabalho que Raissa pretende criar para a exposição. Madeira e papel celofane como uma metáfora da água.
Bárbara Paz, 22
; Tecidos, costura, linhas e objetos formam o conjunto de materiais no quarto-ateliê de Bárbara, que se surpreendeu com um desenho geométrico deixado na parede do cômodo por algum artista de residências anteriores. ;Trabalho com a memória e o que pode ser absorvido no tecido; explica. Da imersão de quase três semanas, a artista pretende sair com novidades, incluindo o aumento de escala de suas instalações.
Rafael da Escóssia, 25
; Caminhando por um terreno do Park Way, Rafael encontrou uma biblioteca jurídica com livros queimados. Formado em direito, ele se surpreendeu e encontrou ali a motivação para criar Manual de direito, misto de instalação e performance que questiona as dinâmicas institucionais, os processos de legitimação e as relações políticas que se sobrepõem às normas.
Shevan Oliveira Lopes, 38
; Estar no ateliê rodeado de materiais é a maior motivação do baiano Shevan Oliveira Lopes. No Pé vermelho, espaço criado por João Angelini em Planaltina, ele trabalha em séries de assemblages construídas com materiais recolhidos pelo Distrito Federal. São entulhos e restos orgânicos que, para o artista, têm um poder simbólico muito grande e, uma vez reunidos e associados, causam um impacto considerável. ;O fato de o trabalho ter ganhando uma visibilidade vem do uso de determinados materiais, da questão da harmonia entre determinados materiais e objetos tão distintos;, avisa o artista. ;Prezo muito à questão do acabamento, porque tudo é digno de respeito. E a busca é trazer aquela agressividade que o material sofreu para um lugar mais poético, harmônico. Há um grito aí.; É uma produção que, segundo Angelini, que acompanha o trabalho de Shevan há quatro anos, vai ganhar projeção nacional. Vale ficar de olho.