Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Filmes preferidos de Renato Russo viram mostra no Cine Brasília

Se estivesse vivo, líder da Legião Urbana completaria hoje 59 anos

"O Júnior costumava me dizer que quando chegasse aos 50 anos, largaria a música de lado e se dedicaria à literatura e ao cinema. A paixão dele pela sétima arte era percebida desde a infância. A partir da adolescência, passou a cultuar filmes de arte, de consagrados diretores, muitos dos quais faziam parte de sua coleção. Quando ele compôs Faroeste Caboclo, via ali o roteiro de um filme." Quem lembra é Maria do Carmo Manfredini, a mãe de Renato Mafredini Júnior, imortalizado como Renato Russo.

Roqueiro, Renato Russo entrou para a história da música brasileira, como compositor, vocalista e líder da Legião Urbana, banda que criou aqui na cidade na primeira metade da década de 1980. O artista, nascido em 27 de março de 1960, no Rio de Janeiro, se estivesse vivo, completaria hoje 59 anos.

Para celebrar a data, uma mostra de cinema que leva o nome do músico será aberta hoje, no Cine Brasília e prosseguirá até 14 de abril, com sessões à tarde e à noite. Entre as produções reunidas há dramas, comédias, documentários e filmes de arte, com a assinatura de diretores franceses, italianos, alemães, espanhóis e norte-americanos, além de um brasileiro.

A seleção foi feita pelo programador José Damata, com atuação permanente no meio cinematográfico brasiliense desde a década de 1970, quando foi um dos fundadores do Cineclube Nelson Pereira dos Santos, no Teatro da Escola Parque. Ele se tornou conhecido também pelo Cinema Voador, responsável por projetar filmes fora das salas de exibição em vários pontos da capital e mesmo fora dos limites do Distrito Federal.

;Convivi bastante com Renato Russo, na época em que ele morava na cidade, antes mesmo da fama e do sucesso da Legião Urbana. Como era um cinéfilo, tinha entrada franca no cinema da Cultura Inglesa, onde eu era programador. Recordo-me dele também assistindo a filmes no Cine Brasília, no Teatro da Escola Parque e no Centro de Criatividade, na 508 Sul, que passou a ser chamado Espaço Cultural Renato Russo;, recorda-se Damata.

Segundo ele, o legionário tinha uma impressionante cultura cinematográfica e chegava a sugerir filmes para serem apresentados na Cultura Inglesa. ;Um deles foi Quadrophenia, de 1979, do inglês Franc Roddam, baseado em disco da banda The Who. Era um documentário raro e não pude atendê-lo. Agora está na mostra e vai ser exibido na sexta-feira, às 18h;, conta.

Da programação da Mostra Renato Russo fazem parte 25 filmes. ;Alguns deles tinham a clara preferência do Renato. Posso citar, por exemplo, os documentários Gimme Shelter, Monterrey Pop e, claro, Woodstock, ao qual assistimos juntos no Cine Clube Nelson Pereira dos Santos, no Teatro da Escola Parque;, destaca o programador. ;Entre os filmes clássicos, o gosto maior dele era por Zabriskie Point, de Micelangelo Antonioni; e Estranhos no paraíso, de Jim Jarmusch;, acrescenta.

Ghost

Na busca de um maior conhecimento sobre esse assunto que tanto despertava seu interesse, Renato chegou a fazer uma matéria no curso de comunicação no Ceub, que tinha Maria Coeli como professora. Os dois se tornaram amigos e o compositor chegou a participar de um filme, dirigido pela mestra.

Com a irmã Carmem Teresa, Renato costumava assistir aos filmes na televisão, em casa. Ela revela que foi uma única vez ao cinema com ele. ;Assistimos juntos à estreia de Gosth (Jerry Zucker), no Cine Atlântida, no Conic. Meu irmão adorou e, depois, comentamos bastante sobre o filme, que fez muito sucesso quando lançado;.

De acordo com Carmem, ele preferia ir ao cinema sozinho. ;Como gostava de filmes de arte, não tinha a companhia dos amigos e dos músicos com quem tocava, que preferiam filmes de ação. Quando passou a morar no Rio, formou um pequeno cineclube com Denise Bandeira, Ana Beatriz Nogueira, Luiz Fernando Borges e outros amigos;, relata. ;O cine-clube funcionava num dos quartos do seu apartamento, em Ipanema, que foi adaptado para essa finalidade. Lá havia uma grande e moderna televisão, com som adaptado. Naquele espaço, ele guardava também a coleção de filmes que armazenou;, complementa.
A narrativa fílmica do trovador
Ricardo Daehn
Mesmo imerso na tempestade em que geriu a letra de A via láctea, ancorada na descrição de perdas, de luzes e de esperança, Renato Russo, por refinamento, dispunha da qualidade do agradecimento ; engrandecido por um ;obrigado por pensar em mim;. Na autenticidade, ele não se rendia à era da ;gratidão; ;, autômata de hoje em dia, que tão pouco diz. Com a mostra no Cine Brasília, integrada por 38 sessões, ecoa o singelo ;obrigado; ao qual cinéfilos fazem coro.

O evento dá pistas do existencialismo perseguido por Russo, diante do gosto pelas obras de Ingmar Bergman (há Juventude e No limiar da vida). O cunho revolucionário (descontado o viés musical de muitas obras do evento) se apresenta em fitas anárquicas como Zabriskie Point e Terra de ninguém (além da exibição do antológico Sem destino).

Abrangente nos tons da sexualidade, a amostragem de filmes contempla títulos de altas temperaturas e propostas diversificadas como Betty Blue e o obscuro Porteiro da noite, além do sufocante Crônica de um amor louco. Para além do riso arquitetado por uma comédia de Jacques Tati incluída no evento (As férias do Sr. Hulot), a qualidade do desbravamento da obra de Renato deve ter bebido de Fitzcarrraldo (de Werner Herzog) e de outro alemão, Wim Wenders, com eterna e inquieta câmera entregue a movies (com personagens que reveem a identidade).

Tudo ajustado ao tom de trecho de Andrea Doria (Nada mais vai me ferir / É que eu já me acostumei / com a estrada errada que segui...). De Wenders também é Asas do desejo, que incrementa a programação, pelo legado dos desencarnados atores Bruno Ganz, Solveig Dommartin e Otto Sander. Trata-se de obra irretocável, como a parelha feita com parte da letra de Monte Castelo: Ainda / que eu falasse a língua dos homens / e falasse a língua dos anjos / sem amor, eu nada seria...; Primorosos, esses introvertidos Renato e Wenders.


Homenagem
Os Correios lançam hoje um selo ; emissão especial ; em homenagem ao cantor e compositor Renato Russo, no dia em que ele completaria 59 anos. O lançamento ocorre simultaneamente em Brasília e Recife. Na sexta-feira será lançado em São Paulo, no Museu de Imagem e do Som. A imagem que ilustra a homenagem mostra o artista no palco, em uma de suas apresentações. Há ainda trecho da canção 29, do álbum Descobrimento do Brasil.
Confira a programação completa
Mostra Renato Russo
Abertura hoje (dia 27 de março), com os filmes As férias do Sr. Hulot (Jacques Tati), às 16 h; Monterey Pop (D.A.Pennebaker), às 18h; e Farenheit 451 (François Truffaut), às 20h. No Cine Brasília (entrequadra 106/107 Sul). Ingressos: R$ 12 e R$ 6 (meia entrada). Não recomendado para menores de 16 anos. Confira programação completa no site.