Algumas cidades e estados do Brasil contam com mecanismos que propiciam a publicação de obras de poetas em começo de carreira. As iniciativas podem ser particulares ou de coletivos engajados na produção cultural; outras vezes, são políticas públicas ; ou de governo, na pior hipótese ; que permitem o desengavetamento de livros que, não fossem tais iniciativas, talvez nunca aparecessem. O caso de Poesia Incrível, projeto de lançamento de primeiros livros de autores iniciantes, merece destaque. Uma parceria da pequena editora mineira Crivo e da produtora Sinergia com empresas privadas, por meio da modalidade de incentivo fiscal da Lei Municipal de Incentivo à Cultura, permitiu que nascesse, em 2014, uma coleção de livros de poesia de distribuição gratuita que já chega ao sexto volume.
Os contemplados pelo edital de 2018, após processo de seleção, foram a belo-horizontina Olivia Gutierrez e o fluminense residente em BH Neilton dos Reis. Nos dois casos, uma poesia consistente pode ser flagrada e, para nossa sorte, fora das gavetas.
Estar onde eu não estou, de Olivia Gutierrez, reúne 18 poemas, alguns em várias partes, e aborda temas como mudança, estar e não estar, o entrelugar. O poema Montagem ou F for fake, exemplifica: ;Agora é janeiro de 2018/e tem 17 caixas no meu quarto/primeiro pensei em levar tudo comigo/mas me falaram que já que não sei como tudo vai ser/melhor deixar algumas coisas para trás/eu nunca tinha pensado que era possível/deixar algumas coisas para trás/não levar tudo comigo/escolher o que levar comigo/(deixar para trás não é a mesma coisa que apagar);.
Olivia Gutierrez sabe por onde a caravana passa, é leitora, leitora de outras poetas, inclusive e principalmente contemporâneas, e constrói uma linguagem poética muito presente e pulsante, carregada de certa melancolia e de temas inquietantes, tais como a infância e a memória.
Neilton dos Reis, em Ano bissexto, apresenta poemas, em sua maioria caudalosos, quase em prosa, em seis partes: ;29 de fevereiro;, ;registros de carnaval;, ;listas;, ;e-mails para o mês de agosto;, ;primavera-versão ou hibiscos e jabuticabas; e ;motivo para o atraso;. Cada uma apresenta, com alguma inexatidão poética, o que nomeia. Neilton brinca com gêneros textuais ordinários, fazendo deles peças de alto teor poético, como é o caso das listas e dos e-mails. Promessas de ano novo/1. criar uma capa para esse caderno; 2.ficar tranquilo quanto ao meu estado civil; 3.não me julgar quando eu surtar por conta do meu estado civil; 4. aprender a dançar como Domhnall Gleeson em About time na cena do casamento; 5. achar uma tintura que deixe meu cabelo parecido com o de Domhnall Gleeson; 6. lembrar de colocar os fones de ouvido na mala durante a viagem que disse que farei e parar de confiar nos fones de ouvido que são distribuídos nos aviões; 7. descer do avião com um lenço na cabeça reproduzindo a cena final de O guarda-costas; 8. parar de superestimar os planejamentos; 9. parar de subestimar as promessas que escrevo; parar um pouco/ (ps. ir ao médico ver aquela alergia).
A linguagem poética de Estar onde eu não estou é breve e reiterativa, enquanto em Ano bissexto o autor surpreende poetizando o que parece comum. Olivia tece poemas saídos de outros ou que continuam ou respondem a poemas anteriores, já Neilton parece poetizar a passagem de um ano, quase em ordem cronológica, incomodando-se ; e ao leitor ; com a memória e o entrelugar. Viajar, sair e voltar são assuntos de ambos os livros, estando sempre mal resolvidos, coisa que na poesia pode ser bem positiva.
Das coisas que poetas precisam fazer, uma é justo dialogar com seu tempo, em especial com o que não desce macio e não é exatamente confortável. Tanto Olivia quanto Neilton têm essa sensibilidade. De fato, cabem na coleção Poesia Incrível, iniciativa sem a qual esses poetas e seus livros poderiam parecer adormecidos. Que bom que estejam despertos.
ESTAR ONDE EU NÃO ESTOU
De Olivia Gutierrez. Crivo Editorial. 64 páginas. Distribuição gratuita
ANO BISSEXTO
Neilton dos Reis. Crivo Editorial.64 páginas. Distribuição gratuita
Ana Elisa Ribeiro é doutora em letras, professora do Departamento de Linguagem e Tecnologia do Cefet-MG, poeta, autora de Perversa (Ciência do Acidente, 2002), Anzol de pescar infernos (Patuá, 2013), Álbum (Relicário, 2018), entre outros.