Quando Heloísa Buarque de Hollanda ingressou na academia, ser feminista não era algo que se declarava em alto e bom tom. Ao contrário, era um tanto temerário ser classificada assim, mas a pesquisadora decidiu dedicar sua vida acadêmica ao trabalho com mulheres e adotou como compromisso intelectual a missão de dar espaço a novas vozes, novos saberes e novas políticas. Encontrou resistência no meio acadêmico e desenvolveu estratégias próprias para lidar com o fato. Por isso, levou um susto quando se deparou com a quarta onda feminista.
Até 2015, ela acreditava que sua geração era a última empenhada na luta feminista. Mas naquele ano, quando viu milhares de meninas e jovens mulheres irem às ruas em protestos contra o projeto de Lei n; 5069/2013, que pretendia restringir o pouco acesso que as brasileiras têm ao aborto, Heloisa se deu conta de que o feminismo havia tomado outra dimensão. E mais: as demandas vinham de todos os lados e estavam sendo ouvidas.
Dessa percepção nasceu Explosão feminista ; Arte, cultura, política e universidade, uma compilação de 532 páginas sobre o feminismo em todos os campos da arte, incluindo aí os vários feminismos contemporâneos reivindicados por diversos setores.
Cooperação
Uma preocupação de Heloísa foi convidar pesquisadoras e ativistas de todas as áreas para participarem e assinarem textos do livro. O lugar de fala, ela entende, é importante. ;Foi difícil, mas eu queria que elas estivessem no livro;, diz. Há capítulos para o feminismo negro, indígena, asiático, lésbico, protestante e para o transfeminismo, assim como uma seção dedicada às veteranas da luta feminista.
Para todas as pesquisadoras que assinam os textos do livro, 2013 é um marco na questão feminista brasileira. ;Existe uma data e 2013 foi um pontapé para a quarta onda. Foi emblemática. Teve aquele turbilhão de emoções com as jornadas de junho e as redes sociais se tornaram um palco muito grande para a política. Começou-se, então, a falar muito em feminismo;, avisa Julia de Cunto, jornalista e pesquisadora que assina textos sobre teatro e música.
Ela conta que a maioria das entrevistadas se percebeu feminista a partir de 2013. São essas vozes que formam Explosão feminista, um verdadeiro documento sobre a chegada da quarta onda feminista no cenário brasileiro.
Artes visuais
Coeditora e fundadora da Revista Beira, a pesquisadora e jornalista Duda Kuhnert acredita que apenas na década de 2010 ficou confortável se autonomear feminista, mas há muito a ideia está presente na produção de artes plásticas no Brasil. E nesse universo, uma linguagem em especial tem presença marcante na autorrepresentação feminina. A performance com o uso do corpo, explica a pesquisadora, é uma das principais plataformas de expressão desse discurso. O corpo é um espaço de fala feminista nas artes visuais.
;Porque, afinal de contas, é disso que a gente fala quando está falando de feminismo: a gente fala do nosso corpo nesse estado. Com certeza, é uma linguagem muito própria desse tipo de pauta e as mulheres estão usando isso de forma a explorar cada vez mais o tema;, diz. No texto, Duda elenca uma série de nomes de artistas brasileiras cujos trabalhos encostam, voluntariamente ou não, em questões feministas. ;É um tópico de debate, porque algumas não gostam de se entender dentro dessa área porque consideram que fecha uma leitura do trabalho;, explica. ;Mas, ao mesmo tempo, outras acham que é potente juntar as duas palavras, arte e feminismo. No geral, a maioria se entende como feminista e se pauta pelo feminismo, mas não necessariamente se coloca nesse lugar.;
Poesia
O ano de 2010 também é um marco para Julia Klein, pesquisadora de cultura, literatura e contemporaneidade da PUC-Rio e coeditora dos Cadernos do CEP. Responsável pela pesquisa sobre o feminismo na poesia, ela explica que, na última década, surgiu uma nova poesia escrita por mulheres cuja forma e conteúdo estão intimamente ligadas às manifestações feministas. Julia cita Ana Cristina Cesar como um ponto de partida de uma geração que encampou a voz feminina na poesia e fez terreno para surgirem as contemporâneas Marília Garcia, Alice Sant;Anna, Bruna Beber e Angélica Freitas, herdeiras diretas do que chama de ;efeito Ana C.;, com uma voz sofisticada e distante do que já foi chamado de ;poesia de mulher;.
Ao lado, vem uma geração não tão impactada pelo ;efeito Ana C.;, mas igualmente potente, formada por nomes como Micheliny Verunschk, Maria Rezende e Laura Eber que, segundo a pesquisadora, trouxeram de vez para a cena brasileira a poesia feita por mulheres. Mas isso não quer dizer que são poetas feministas. ;Mesmo quando o feminismo não aparece tematizado ou refletido numa dicção mais ousada, infalivelmente ecoa como uma espécie de fecundação subterrânea do poema, ainda que isso não seja muito visível no texto;, avisa a autora. As perspectivas de gênero e corpo, segundo ela, estão presentes e toda a poesia pós-2013, mas é preciso atentar para não fazer disso um reducionismo.
Música
A música, para a pesquisadora Julia de Cunto, talvez seja a área em que o feminismo tenha mais visibilidade, especialmente quando se trata de pop, rap e funk. Entre as entrevistas realizadas por Julia e Maria Bogado, pesquisadora da UFRJ com quem divide o texto, estão nomes como Karol Conka, as meninas do grupo Rakta, Ana Frango Elétrico, Linn da Quebrada, Karina Buhr e MC Carol. ;Na música, o que é mais potente são as reivindicações de uma voz para as mulheres nesse espaço da cultura pop, com o funk e o rock, porque praticamente todos eram dominados pela masculinidade;, explica Julia. Se no teatro as mulheres eram vistas como musas ou atrizes, na música eram reservadas a elas a função de cantoras. ;Mas agora elas estão ocupando muito mais o papel de escrever as letras, compor as melodias. É uma reivindicação muito potente. E na música, ainda tem as performances, como a da Carol Conka, que fez um vídeo, Lálá, sobre o sexo oral nas mulheres. As pessoas estão comprando muito isso do empoderamento feminino.;
Maria Bogado acrescenta o fato de que boa parte dessas mulheres chegam à música depois de passarem por outras áreas. ;As mulheres não tiveram tanta oportunidade de fazer e de estudar música, nem de ocupar os espaços da música. Acaba que elas passam meio ao largo e, quando fazem música, acabam trazendo outros repertórios;, diz.
Teatro
O que mais se nota no teatro contemporâneo feito por mulheres é a vontade de ressignificar histórias que, há décadas, são contadas a partir de uma perspectiva masculina. Heroínas como Medeia e Ofélia são revisitadas e apropriadas pelo que a pesquisadora Julia de Cunto chama de novas dramaturgias femininas. Mas não é só isso. A presença de mulheres em todas as fases da produção teatral também é uma preocupação que pauta a produção de nomes, como Grace Passô, Laura Castro, Juliana Pamplona, Mariana Nunes e Diana Herzog, algumas das entrevistadas para o capítulo dedicado ao teatro.
;No teatro brasileiro contemporâneo, o feminismo é muito potente, é pé na porta mesmo;, avisa Julia. ;As mulheres são pessoas que agem e pensam. E tudo é político. O teatro o feminista se potencializa muito. Elas querem fazer grupos de produção só de mulheres e esse tipo de ocupação do espaço é muito importante pra elas.;
Cinema
Com o protesto de Patricia Arquette, atriz de Boyhood, no Oscar de 2015 e o impacto causado pelo longa Que horas ela volta?, de Anna Muylaert, no mesmo ano, foi quase concomitante a chegada das discussões sobre a presença da mulher no cinema brasileiro e internacional. Visto por mais de 490 mil espectadores, o longa sobre a empregada doméstica Val (Regina Casé) e sua filha Jéssica (Camila Márdila), que se recusa a ficar confinada à condição de filha da empregada, trouxe para o centro do cinema brasileiro a discussão sobre o protagonismo feminino na produção nacional.
As pesquisadoras Érica Sarmet e Marina Cavalcanti Tedesco partem do episódio em que Anna Muylaert falou, durante um debate em Pernambuco, que homens têm dificuldade de ver uma mulher no papel de protagonista. A fala veio depois de ser atacada por Claudio Assis e Lírio Ferreira e as discussões que se seguiram passaram a ocupar um lugar importante em festivais e eventos de cinema nacional. O episódio motivou a criação do grupo no Facebook Mulheres do Audiovisual Brasil, idealizado pela produtora Malu Andrade para discutir o tema. Hoje, são mais de 18 mil membros.
Feminismo em HQ
A história da luta feminista, desde os primórdios, no século 19, é contada na HQ Mulheres na luta ; 150 anos em busca de liberdade, igualdade e sororidade, da escritora sueca Marta Breen e da ilustradora Jenny Jordahl. É em 1840, nos debates pela abolição da escravidão na Inglaterra e nos Estados Unidos, que a autora decidiu começar o livro. Ao longo da HQ, o feminismo se mescla a várias lutas por direitos humanos e Breen incorpora personagens emblemáticas nesse cenário desde o século 19 até o 21. Faz questão de explicar quais eram as bandeiras feministas e como elas fazem sentido até os dias de hoje. Educação, direitos iguais entre homens e mulheres e o poder de decidir sobre o próprio corpo.