Há 20 anos, um relato autobiográfico de Susanna Kaysen ; tratada por transtornos psicológicos na década de 1960 ; deu o que falar. Foi adaptado para cinema, sob o título de Garota, interrompida, onde a jovem é submetida a uma série de tratamentos psiquiátricos para lá de cruéis. Imerso numa realidade ainda mais perversa, em que teria o "demônio" da homossexualidade expurgado sob a influência da organização dita cristã, o escritor Garrard Conley estarrece amantes da literatura nos escritos em que detalha a experiência da chamada "cura gay" em Boy erased: uma verdade anulada. A publicação também foi adaptada por Hollywood, com Nicole Kidman no elenco.
Garrard, um fervoroso cristão, não esquece das mazelas trazidas pelos métodos usados para a suposta "cura", quando ele ainda tinha 19 anos. A "terapia" resultou, entre outros desgostos, na extorsão de uma fé, outrora inabalável.
Evento que desencadeou um movimento de frenagem, com respaldo jurídico contra práticas discriminatórias a homossexuais, o assassinato do jovem estudante Matthew Shepard, em 1998, cravou outro histórico na cabeça de Garrard, hoje dedicado ao podcast UnErased, contra a pretensa reversão de sexualidades. Ao Correio, ele explica: "Quando Shepard morreu, muitas pessoas na minha igreja disseram coisas rudes sobre ele e eu me lembro claramente de um homem dizendo que Shepard merecia morrer por causa de sua sexualidade. Isso me afetou muito e me convenceu a manter minha sexualidade em segredo".
Se a adaptação para o cinema do livro Boy erased figurou em inúmeras listas de apostas para o Oscar ; apesar de ter sido barrada até mesmo no lançamento para os cinemas brasileiros, mercado em que chegará em DVD, em abril, com 40 minutos de extras ; Garrard Conley, ativista do empoderamento LGBTQ, ao menos celebra a indicação de A favorita. A trama fala sobre uma rainha lésbica.
Presente em mais de 20 festivais, e com estreias marcadas em países como Reino Unido, Polônia, Alemanha e França, o longa, segundo a distribuidora no Brasil, Universal, teve cancelamento por causa de questões mercadológicas. A ideia de um boicote, entretanto, foi amplamente difundida por internautas. "A favorita foi um dos meus filmes preferidos do ano ; aquele roteiro é uma obra-prima", observa Garrad.
Atento ao desempenho de seu livro no país sob o governo de Bolsonaro, o autor aposta na empatia, mesmo junto a "pessoas que não partilham da sua formação fundamentalista".
;Há pessoas que gostam de acreditar que não há conexão entre as experiências extremas pelas quais passei e as próprias vidas, mas eu geralmente acho que as pessoas têm topado com o mesmo volume de ideias preconceituosas que encontrei na terapia de conversão, ainda que sob prisma diferenciado;, avalia.
Trabalhando na edição do novo romance (com o primeiro rascunho completo), Garrard garante que terá muita diversão, a partir dos ;novos projetos secretos;, todos em andamento.
Entrevista // Garrard Conley, escritor
Vivemos em um mundo radical, com o reino da intolerância e da rapidez de juízos. Você percebe falta de fraternidade hoje em dia?
Eu acho que há um aumento exagerado da extrema direita no mundo no momento, sim, sem grandes novidades. Se tivermos a visão a longo prazo da história, o progresso nunca é percebido numa linha reta. Nós vemos retrocessos ao longo da história dos direitos das mulheres, por exemplo, e agora vivemos alguns contratempos no curso dos direitos LGBTQ. Um dos meus principais objetivos desde a publicação do Boy erased foi demonstrar para as pessoas sobre este fenômeno histórico, chamando a atenção para o fato de que mesmo os pensamentos ou declarações intolerantes que sejam aparentemente menores podem levar à realidade fascista, para a criação de instalações como as do Amor em Ação.
Como você nota os danos causados pela terapia em que esteve?
Eu não acho que é possível medir traumas em uma escala. Minhas duas semanas no Love in Action (Amor em ação, em tradução livre, nome da clínica a qual ficou inernado) foram suficientes para me afetar, desde sempre, durante a maior parte da vida adulta. Para alguns, terapia de conversão resultou em suicídio; para outros, anos de dificuldade e medo.
Como é, hoje, o relacionamento com seus pais?
Minha mãe tem me apoiado muito, na última década. Ela esteve comigo na turnê do livro e ainda nas pré-estreias do filme. De muitas maneiras, sua jornada ecoa minha própria vida pós-LIA (Love in Action), pelas descobertas de que ela também não se encaixava no mundo fundamentalista do meu pai. Ela não carrega o estereótipo de uma esposa de pregador, e ela apoia os direitos LGBTQ, ao contrário de muitos dos congregantes. Meu pai ainda acredita que ser LGBTQ é uma escolha, embora ele já não acredite que a terapia de conversão tenha sido útil, e inclusive ele me pediu desculpas por ter me enviando para o Amor em Ação.
Lidando com estatística: o que você poderia nos dizer sobre as pessoas submetidos à mesma realidade? Qual o custo da chamada cura gay?
Quando minha mãe falou pela primeira vez com os conselheiros do Love in Action, eles disseram que havia uma taxa de cura de 85%. Claro que números completamente inventados. Segundo a American Psychological Association e demais organizações médicas que trataram do tema, há confirmação nula de que a terapia de conversão seja eficaz, embora, claro, algumas pessoas que sofreram lavagem cerebral em lugares como Love in Action assimilem a ideia de cura. Minha teoria sobre qualquer pessoa alegando que a terapia de conversão funciona é a de que se tratam de pessoas bissexuais.
O preconceito segue você, na posição de homem casado? As pessoas ainda associam homossexualidade à promiscuidade?
Seria absurdo as pessoas persistirem em sua crença de que a homossexualidade é inerentemente mais promíscua, especialmente dada a forma como a mídia agora retrata heterossexualidade. Ser casado, para mim, tem muito pouco a ver com minha conduta sexual.
Você acredita que tenha levado duas vidas? Houve uma vida deixada para trás?
Eu certamente acredito que há aspectos da minha vida que atravessam meu passado. Por exemplo, meu amor pela literatura, embora o cérebro fundamentalista herdado na condição de criança tenha sido deixado muito para trás. O título Boy erased refere-se principalmente ao desejo de apagar minha identidade sexual, mas também se refere ao garoto que eu apaguei enquanto tornou-se uma nova pessoa, essa nova vida, que literalmente, agora eu conduzo.
O que você sabe sobre o Brasil e o que espera dos seus leitores daqui?
Estou animado para ver como o Boy erased afeta um país que tem pressões cristãs fundamentalistas que me são familiares desde a infância. Eu acho que a autobiografia pode ajudar muitas pessoas que passam por experiências semelhantes, e mesmo que muitos dos meus leitores não tenham experimentado terapia de conversão ou não tenham conexões com o tema. Acho que eles poderão reconhecer algumas das mesmas retóricas em suas próprias vidas. Além disso, eu projetei o livro para ser principalmente uma história de família, uma história sobre pessoas que se amam mas fazem coisas muito prejudiciais para outros, à parte deste círculo de amor. Este tema é universal, espero.
Masculinidade é uma palavra ligada a muitos estigmas (como está escrito no livro). Em que aspectos toda a experiência fez de você um homem melhor?
Eu não sou fã de masculinidade tóxica, como eu tenho certeza que você sabe, e eu acredito que melhor masculinidade começa quando reconhecemos maneiras catalizadoras de força presentes na sensação de segurança e de ser amado. Muitas pessoas no mundo parecem temer que a mudança da masculinidade de um estado menos tóxico resulte em emasculação. Mas o que eu e muitos outros ativistas propomos é uma masculinidade construída em cima de algo mais sólido do que destruir certas pessoas em prol de exaltar a si próprio. Enquanto a masculinidade for definida por outra vertente e por intolerância, não será uma masculinidade firme.
Existe um caminho para alcançar Deus? Você é crente? O que a religião representa atualmente para você? Como você se relacionou com culpa, confissões e regras?
Eu me considero agnóstico nos dias de hoje, embora permaneça aberto a experiências religiosas. Uma das grandes tragédias da terapia de conversão é que muitas vezes ela usa seu relacionamento com Deus como uma arma contra você, e isso pode causar uma violação da fé. Minha fé foi tirada à força de mim, e isso é incrivelmente triste até hoje. No entanto, não vejo nada incompatível em ser cristão e gay. Eu conheço muitos cristãos gays, e eles geralmente conhecem a Bíblia melhor do que fundamentalistas.
Entre Amor e Ação ; elementos que dão nome à entidade cristã que aposta na recuperação de gays ;, parece que você escolheu a ação (risos). No processo do livro que implode fundamentos da entidade, você colheu efeitos negativos?
Recebi centenas de lindos e-mails e cartas de pessoas que me agradeceram por escrever sobre a terapia de conversão. Eu também recebi algumas ameaças e, naturalmente, muitos comentários negativos de pessoas anti-LGBTQ. Provavelmente a parte mais difícil da minha exposição teve ligação com pessoas suicidas ou com pessoas que ainda estão em terapia de conversão. Eu tento ajudar essas pessoas da melhor maneira. Eu posso, mas isso pode ser emocionalmente desgastante. Eu sou escritor, então eu também sou introvertido! Eu não estou acostumado com tanta atenção.