;Russo; é o apelido de criança que, por vezes, era grafado com spray em alguns muros. ;APR; é a sigla para Artilharia Pesada da Rima, grupo de hip-hop que Flávio Paiva manteve por alguns anos. O rap acabou deixado de lado pelo grande volume de atividades executadas pelo cantor, compositor, produtor cultural, videomaker, educador e agora ator.
Se a carreira no rap parou, a cinematográfica começou com tudo, premiado como melhor ator coadjuvante no Festival de Brasília, em setembro passado, por sua atuação no longa Temporada, de André Novais Oliveira. O longa levou outros quatro troféus Candango, incluindo o de melhor filme. O personagem de Russo em cena, além de ter o mesmo nome do ator, mostra ao público um retrato fiel de uma figura fortemente ligada à comunidade ao seu redor.
Se no filme ;Russão; é um agente boa-praça da saúde pública na área de controle de zoonoses, na vida real sua dedicação é à cultura. Há cinco anos ele mantém o projeto sociocultural Coletivo Terra Firme, no Bairro Morada da Serra, em Ibirité, na Região Metropolitana de BH, localidade que frequenta há 30 anos. Ele está com 41. O espaço hoje atende 15 jovens e promove iniciativas como duelo de MCs, cineclube popular, sarau poético, bibliotecas urbanas com geladeiras cheias de livros espalhadas pela vizinhança, entre outras ideias que buscam promover a arte local, segundo ele, desamparada pela falta de investimento público.
Para chegar ao atual momento de prestígio, o caminho da educação por meio da arte foi decisivo para Russo APR. ;Fui expulso da escola mais de 10 vezes. Não tinha perspectiva de futuro. Comecei a trabalhar muito cedo, aos 12. Depois, fui pai muito cedo, aos 20. Então, estudar não era minha prioridade;, conta ele. No entanto, seu destino mudou pelas rimas do rap. Depois que começou a compor e a gravar, seu caminho cruzou com o do pesquisador da Faculdade de Educação e fundador do Observatório da Juventude da UFMG Juarez Dayrell, que tinha o hip-hop local como objeto de estudos.
Guru
;Ele foi meu guru de formação cultural e humana, uma referência. Via no olho um desejo de mudança social. Ele me mostrou que aquilo que eu fazia era importante, sendo que, até então, eu só ouvia que iria ser bandido ou vagabundo. Ele me levou para palestrar na universidade e me fez finalmente ter interesse em voltar a estudar;, conta o então cantor de rap, que se formou em pedagogia há alguns anos e vem atuando como educador cultural desde então.
;Meu sonho é criar uma escola transformadora, que dialogue com a diversidade, que tenha como base a periferia, com histórias de luta, de diversidade, que transforme pessoas, assim como foi comigo. Não consigo ver a escola tradicional como um meio para essas mudanças. É preciso usar mais o chão da comunidade como meio educativo, onde não só o professor ensine, mas todos os envolvidos naquele ambiente;, afirma Russo, que, assim como seu personagem no filme, conhece bem a região onde atua, especialmente a juventude local.
Nessa trajetória, a câmera também passou a fazer parte de sua rotina profissional, empregada na produção de clipes e de outros vídeos. Sua posição em relação a ela se inverteu, na verdade, a convite do amigo Maurílio Martins, diretor e produtor na Filmes de Plástico, de Contagem, da qual André Novais de Oliveira também é integrante. Dirigido por Maurílio, Russo ganhou um papel em No coração do mundo, que acabou de estrear no Festival de Roterdã. Nos ensaios, conheceu André, que encontrou nele a peça que faltava no roteiro de Temporada.
;Eu estava ensaiando, e o André estava acompanhando e ficou olhando para mim. Não falou nada. Depois me disse: ;É você mesmo. Vou te convidar para trabalhar no meu filme;. Gostei muito, por saber que é diretor negro, com uma produtora grande e um trabalho muito rico, que eu já tinha visto nos outros filmes dele, como Ela volta na quinta (2014);, conta.
Sem nenhuma experiência de atuação em longas, Russo conta que precisou se afastar por 15 dias de seus outros projetos para se dedicar às filmagens. Sua principal referência para se sair bem no novo desafio foi a colega de elenco e protagonista Grace Passô, que também está em No coração do mundo. ;Uma atriz completa;, diz Russo, que já tem convites para atuar em outras produções locais.
Periferia
Como a proposta de Temporada, tal qual outras produções da Filmes de Plástico, é uma abordagem positiva da vida na periferia, Russo entende que a conexão do filme com sua trajetória foi perfeita. ;Tem 20 anos que desenvolvo trabalhos nessa área. O que levo para o filme dialoga com o que fiz no audiovisual, na música e na produção cultural. O filme retrata um pouco da minha história. André me deu muita liberdade para desenvolver falas e a própria história do personagem tem essa conexão;, diz Russo.
Impedido de receber pessoalmente o prêmio em Brasília por estar se recuperando de uma cirurgia bariátrica, Russo gravou um vídeo de agradecimento à boa recepção que o filme teve em sua estreia em Brasília, da qual havia sido informado pela produção. Em suas palavras, ele dizia que quem ganhava não era ele, tampouco a produtora, mas o cinema brasileiro. Para Russo, Temporada mostra que ;é possível um favelado sem formação acadêmica em teatro desenvolver um trabalho de forma original e cativante;. Ele defendeu ainda o poder da arte na construção de uma sociedade mais justa.
;A arte de periferia é rica, poderosa e empoderada. Mas, na mídia convencional, é colocada como uma negação. O jovem negro é criminalizado, tanto quanto o funk, o hip-hop. É uma realidade sempre desenhada de forma violenta e agressiva, mas, se você der um rolê na periferia, vê que não é nada disso. Os filmes que o Maurílio Martins, o Gabriel Martins e o André Novais fazem retratam o cotidiano da comunidade com histórias bonitas, de companheirismo, simplicidade, pessoas que se apaixonam. Aprendi muito com eles e é o que procuro fazer em meus projetos;, diz.
Em 2016, Russo tentou se candidatar, sem sucesso, a vereador em Ibirité, pelo PCdoB. Neste ano, ele juntará forças na proposição de pautas para a cultura de Belo Horizonte, dentro da proposta de mandato coletivo chamada de Gabinetona, das vereadoras Cida Falabella e Bella Gonçalves, do Psol. Ele reforça que é preciso ;valorizar as bases; para fortalecer a cultura nas periferias e as lutas pelas causas identitárias.
;A gente já lutava por isso, mas agora é preciso lutar mais. A própria população está alienada. Muita gente não tem noção do que é racismo e intolerância. Quem sofre isso é tido como a minoria, mas sabemos que é a maioria, e ela começou a se unir. É um momento em que não podemos soltar a mão de ninguém e, mais do que nunca, fortalecer as nossas bases, senão vamos retroceder;, argumenta Russo Apr.
;Meu sonho é criar uma escola transformadora, que dialogue com a diversidade, que tenha como base a periferia, com histórias de luta, de diversidade, que transforme pessoas, assim como foi comigo. Não consigo ver a escola tradicional como um meio para essas mudanças. É preciso usar mais o chão da comunidade como meio educativo, onde não só o professor ensine, mas todos os envolvidos naquele ambiente;
;A arte de periferia é rica, poderosa e empoderada. Mas, na mídia convencional, é colocada como uma negação. O jovem negro é criminalizado, tanto quanto o funk, o hip-hop. É uma realidade sempre desenhada de forma violenta e agressiva, mas, se você der um rolê na periferia, vê que não é nada disso. Os filmes que o Maurílio Martins, o Gabriel Martins e o André Novais fazem retratam o cotidiano da comunidade com histórias bonitas, de companheirismo, simplicidade, pessoas que se apaixonam. Aprendi muito com eles e é o que procuro fazer em meus projetos;