Ricardo Daehn
postado em 03/02/2019 07:34
Há pouco mais de três anos, com um prêmio honorário concedido pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas ; que vota entre os indicados ao Oscar ;, o diretor e professor universitário Spike Lee viu reparada parte da injustiça que acompanha a carreira dele, ainda não detentor de um Oscar competitivo. Na ocasião do prêmio, entregue num palco que reuniu Wesley Snipes, Samuel L. Jackson e Denzel Washington, Lee contou do aprendizado de vida, a duras penas, trazido dos pais: ;;Você tem que ser 10 vezes melhor do que seus colegas brancos ; ser igual não será o suficiente;. Isso foi instilado em mim ; você tem que, constantemente, se superar;. Destacado pelo cerimonial como iconoclasta, ativista e artista, Lee compareceu, vociferando pela necessidade de estilo no palco do Oscar, e calçando tênis dourado presenteado das mãos de Michael Jordan, ele ouviu na sua apresentação a música A change is gonna come (Uma mudança está por acontecer).
No discurso, o tom de Spike Lee (hoje, com 61 anos) antecipou a propensão à diversidade (cavada pela então presidente da Academia Cheryl Boone Isaacs) que resplandece na atual edição do prêmio, em que, depois de quase 40 anos de carreira, Spike Lee recebe a primeira indicação a melhor diretor, se tornando o sexto negro da história do prêmio que completa 91 edições. O filme Infiltrado na Klan, com seis indicações ao Oscar, compete ainda em categorias como melhor filme e melhores montagem e roteiro adaptado. ;O filme é o azarão (em inglês, ;cavalo escuro;) ; com todo o reforço do jogo de palavras que seja possível. Quer saber mais?! Tudo faz sentido: sempre fui o vira-latas, desde o começo, desde a escola de cinema. Ainda sem mudança no curso desta narrativa, confesso que até gosto desta posição;, comentou o diretor a um portal de notícias australiano.
;Perdido no matagal;, como ele já contou, do dia a dia como aluno do Morehouse College ; antes, frequentado pelo pai, que fora calouro de Martin Luther King ;, Spike Lee era um aluno deficitário: ;Não que não fosse esperto, mas era desmotivado;, como costuma dizer. Infiltrado na Klan, detido num caso real do policial negro Ron Stallworth, aos fins dos anos de 1970, como contado em autobiografia de 2014, conseguiu acesso a muitas informações da organização racista Ku Klux Klan, em ação desde 1865. Tudo ocorreu sem suspeição de que ele fosse negro. Por enquanto, as premiações do longa foram restritas, mas nem por isso menos valiosas: tido como ;o filme do ano;, pelo American Film Institute, o filme levou menção especial no prêmio ecumênico do Festival de Cannes (em que obteve o Grande Prêmio), além de ter sido o escolhido do público, no Festival de Locarno (Suíça). O filme é estrelado por John David Washington (filho de Denzel Washington) e Adam Driver.
Namoro antigo
Antes mesmo do destaque em 2015 para o cineasta, Spike Lee e o Oscar já haviam se topado: quando estudante, pelo filme Joe;s Bed-Stuy barbershope, Lee venceu, em 1983, a contenda reservada a iniciantes, aos olhos da Academia. Com o prêmio alternativo (uma caixa de madeira com o símbolo do Oscar), Lee esperou, em vão, ;por ligações de Spielberg, George Lucas, Fox ou Universal;. Sem telefone, luz ou mesmo aquecimento (por falta de pagamento), o diretor encampou o ensinamento repassado aos alunos: arregaçou as mangas, e atacou, atacou, atacou, atacou.
Muito da luta foi balizado pelos esforços da avó Zimmie Lee que, mesmo escrava, alcançou um diploma técnico e, por 50 anos, ensinou artes. ;Ela nunca teve um estudante branco que fosse, por causa da Lei Jim Crow (de fundo segregacionista, e vigente até 1965); por 50 anos, estudantes brancos foram privados de conhecer uma excelente professora;, ressaltou o engajado artista.
Se, como ele conta, até hoje não sabe ;se encontrou os filmes; ou se foram eles que o encontraram, Spike Lee, durante peculiar verão de 1977, numa Nova York em crise, deixou o posto de famigerado jogador de beisebol, para empunhar uma câmera doada por uma amiga decidida a se tornar médica. Morador do Brooklyn, partiu para o registro de saques efetuados pelos ;irmãos e irmãs; (como descreve) e por porto-riquenhos ; que se atracavam em calçados, tevês e fraldas, durante o primeiro verão da disco ; tudo foi usado no documentário A última trapaça no Brooklyn, que atestou a empolgação do futuro realizador em se tornar ;um especialista em comunicação de massa;.
Tido, por anos, como o porta-voz dos artistas negros, depois de realizar filmes como Febre Selva (1991), Spike Lee, que acumulou amor pela sétima arte, pela ação da mãe Jacquelyn, que o soterrava com idas ao cinema, nunca deixa de demarcar atitude. Num passado recente, ressaltou a projeção do censo americano para um 2043 repleto de minoria branca. E completou: ;Nos escritórios, não vejo negros à exceção dos seguranças. Nossa indústria do cinema está muito atrás da reservada aos esportes. Sem contar a Oprah Winfrey ; é mais fácil ser presidente do país do que encabeçar um estúdio;. Já a autoavaliação para Infiltrado na Klan não deixa por menos: ;Este filme conta do mundo de desenho animado em que vivemos. Fala diretamente a 800 mil americanos desesperados por não conseguirem honrar dívidas. Condiz com tudo o que este cara trouxe para o mundo desde que ocupou a Casa Branca;.
Outros diretores negros no Oscar
John Singleton
; Mais jovem concorrente, aos 24 anos, Singleton competiu por Boyz N the hood (1991)
Lee Daniels
; A vitória da primeira diretora (Kathryn Bigelow) no Oscar desbancou o realizador de Preciosa (2009)
Steve McQueen
; Em 2013, o artista plástico e cineasta britânico à frente de 12 anos de escravidão perdeu para Alfonso Cuarón, de Gravidade
Barry Jenkins
; Vencedor pelo roteiro adaptado de 2016, Jenkins perdeu o prêmio de direção com Moonlight, produção que levou a categoria de melhor filme
Jordan Peele
; Em 2017, Peele conquistou o Oscar de roteiro original, por Corra!, mas, na categoria direção, deu Guillermo del Toro
O cinema contestador de Spike Lee
4 little girls (1997)
; Documentário indicado ao Oscar, mostra a ação de membros da Ku Klux Klan que atacaram uma Igreja Baptista, no Alabama de 1963, causando a morte de quatro meninas.
Faça a coisa certa (1989)
; Em dias escaldantes, o ambiente fica repleto de desajustes sociais que despontam, a partir de uma crítica à decoração de uma pizzaria. Indicado para Oscar de roteiro original e de ator coadjuvante (Danny Aiello).
Malcolm X (1992)
; Com mais de três horas de duração, mostra a projeção do icônico líder ativista Malcolm X. Indicações ao Oscar de melhor figurino e de melhor ator (Denzel Washington).