Mas Edna Rezende não precisou decifrar ;la langue des oiseaux; ; a língua dos pássaros usada pelos trovadores da França medieval ; para dar forma ao seu novo livro, A duras penas, Editora Patuá, 2018.
A autora simplesmente fez dos pássaros, alternando com as pessoas, os narradores de seus 10 contos. Neles, Edna Rezende apresenta um conjunto de personagens que impressiona e configura a realidade humana do mundo.
Faz do universo cotidiano a matéria dos sentidos e determina que o leitor receba essas impressões na orla sensorial. Com sua magia verbal, Edna traduz os sentimentos mais comuns e inclui o seu tecido filosófico nos desfechos incomuns dos contos.
A cacatua afirma que ;os humanos desdizem com gestos o sentido das palavras que acabam de pronunciar;. A humanidade vem na voz da Joaninha-de-barro ;a incerteza é uma tortura constante, que se projeta no tempo. Muito do que penso se me afigura como encenação, invencionice. Quero adiar a morte contando minha história, preenchendo lacunas verossímeis ou não. Seria eu uma Xerazade de penas?;.
No quinto conto, o coleiro diz que precisa se lembrar de que é um passarinho e, no espetáculo que transcorre em seu quintal, afirma ser maestro e diretor ;...ávido daquela estranheza magnífica, que mascara a realidade e me encaminha para o sonho.;
Edna Rezende nos mostra em A duras penas ser fiel à musicalidade das palavras. Elas soam como uma litania, um canto simples e denso, por vezes de uma crueza ímpar, mas sempre sem abrir mão do ritmo e da música.
Assim, a brevidade da vida, a incompreensão, os equívocos e os desencontros ganham extenso relevo e se fazem reflexão.
O quintal, o voo, o fogão, a mulher, o pássaro, o cobogó, a traição, o tempero ; o orgânico e o inorgânico ; são imagens naturais das cenas representativas da vida humana. Talvez produto da cumplicidade da autora com as artes cênicas e a dramaturgia.
Mais do que histórias que emocionam, A duras penas traz referências que evidenciam o refinamento cultural de Edna Rezende. O Pássaro de Fogo, de Stravinsky, o mausoléu Taj Mahal, erguido por amor a Mumtaz Mahal, os escritores Allan Poe, Olavo Bilac, Fernando Pessoa, Ivan Turguêniev e o zoólogo Konrad Lorenz passeiam livres pela obra de Edna sem pedantismos e sem embates com sua escrita clara e precisa.
Com um belo projeto gráfico, a Editora Patuá nos presenteia um objeto livro de qualidade. As aquarelas de Leonardo Mathias prescindem de adjetivos, transbordam poesia e promovem uma indiscutível aliança com os contos de Edna Rezende.
Portanto, o leitor terá em mãos um livro de excelência que, certamente, e sem trocadilhos, alçará voos maiores. Lendo-o talvez se tenha a sensação de beber o sangue do dragão Fafnir da ópera Siegfried, de Richard Wagner ; e passaremos todos a entender o canto dos pássaros.
Ana Maria Lopes é jornalista e poeta