A música instrumental brasileira é uma ciranda sofisticada de gerações. Como num círculo, sem que se saiba onde está o começo ou o fim, Edu Lobo (1943) puxa Tom Jobim (1927), que arrasta Moacir Santos (1924), que empurra Villa-Lobos (1887). Apesar dos movimentos e dos vários integrantes ; lista-se um sem-números de seguidores de Radamés Gnattali (1906), Hermeto Pascoal (1936) e Egberto Gismonti (1947) ;, a roda se amplia a cada instante, basta olhar para o pianista Amaro Freitas (1991). Recém-convidado para girar, ganhou o mundo em menos de dois anos e pode ser considerado a maior revelação dos últimos tempos do jazz nacional.
Ao observar a roda em movimentos contínuos, o pernambucano Leopoldo Conrado Nunes decidiu entrar por conta e risco. Como um discípulo distante no tempo e no espaço de mestres como Lobo, Jobim e Moacir, o multi-instrumentista lançou, nas plataformas de internet,, o disco Cinema boreal. Ali, ele é uma espécie de faz-tudo, das composições aos arranjos. Contou, entretanto, com a ajuda de músicos como o próprio Amaro, que, em entrevista ao Correio, elogiou o resultado do trabalho: ;Ele fez tudo com muito respeito às músicas e aos músicos, um exemplo de produção e cuidado;.
Leopoldo conseguiu em Cinema boreal a leveza da sofisticação, criando riffs a partir de bases compostas com violões e guitarras, deixando os convidados livres para atuar. ;Tive o privilégio de participar improvisando em três músicas, Leopoldo me fez uma proposta indecente: nove minutos de improviso em três músicas, gastei todo meu fraseado;, diverte-se Amaro, que tocou em Brasília no último mês de agosto. Leopoldo, que é fotógrafo e produtor de trilhas para documentários, filmes e balé, levou dois anos para concluir o álbum, que custou R$ 30 mil, tirados do próprio bolso. ;Ainda faço trabalhos pontuais de fotografia e vivo das composições;, diz Leopoldo.
Memória afetiva
Mas não só de referências brasileiras se forma um cidadão. A decisão de se tornar músico veio aos 13 anos. E teve, entre outros estalos, um show no Recife do baixista Stanley Clarke (1951), do baterista Stewart Copeland (1952) e do guitarrista Andy Summers (1942), os dois últimos do Police, que tinha como protagonista o britânico Sting (1951), à época, já fora do barco. Os monstros Clarke, Summers e Copeland, naquele show magistral na capital pernambucana, no fim de 1987, faziam uma espécie de turnê caça-níqueis pela América Latina e levavam a tiracolo uma desconhecida cantora norte-americana chamada Deborah Holland. Leopoldo também ouvia César Camargo Mariano (1943) e ditava as referências para os privilegiados amigos da época.
Em Cinema boreal, Leopoldo toca violão de aço e nylon, teclados, alguns pianos, baixo elétrico e fretless (sem trastes), além de parte das percussões. Em determinados momentos, as músicas lembram Edu Lobo, noutros, Moacir Santos. A resiliência em produzir um disco com tal qualidade ao longo de 24 meses é o mais impressionante de todo o trabalho. A faixa que dá título ao álbum é, segundo Leopoldo, inspirada em Villa-Lobos. ;Após o tema inicial, a música sugere um caos descontrolado, seguido por um relaxamento antes de reiniciar em outra tonalidade. Villa fazia muito isso.; Voltamos ao início da ciranda de referências, que, sem retrocessos, se fecha com a audição de Cinema boreal.
SERVIÇO
Cinema Boreal
Disco de Leopoldo Conrado Nunes. Independente, 13 músicas. Disponível nas plataformas digitais.