Dostoiévski tomou sopa de couve durante quatro anos na ;casa dos mortos;, como ele chamou a ;kátorga;, presídio onde cumpriu pena com correntes nos tornozelos, e de onde olhava um ;céu estranho; pelas fendas do muro. E, como Botticelli, fez o mapa do inferno, localizado na Sibéria, onde o Judas perdeu as botas. Passou por tudo: fome, frio, calor, tristeza, doença, trabalhando duro como condenado que era, um Sísifo, carregando pedras, empurrando uma roda que girava sem fim, sangrando suas mãos. (Disse que se alguém quiser acabar com um homem, dê-lhe uma tarefa inútil). Condenado à morte por ter escrito e divulgado panfletos com críticas ao tsar Nicolau I.
Essa morte anunciada, e suspensa no último minuto, foi na verdade uma macabra encenação. Uma roleta russa, pois quando os soldados já tinham os dedos no gatilho e quando ele já estava encapuzado e amarrado no poste para a execução ; momento que jamais pôde esquecer ; a execução foi suspensa. O dia estava extremamente frio, mas ele não sentiu, só sentiu medo, pois queria muito viver.
A pena foi substituída pela condenação a trabalhos forçados na Sibéria, onde mergulhou no mais profundo da alma dos homens e muito aprendeu sobre sua natureza ao conviver com miseráveis de todo tipo: assassinos impiedosos, parricidas, contrabandistas ; adubo para sua vida e obra posterior ;, porque pôde também descobrir aquele fio de esperança e bondade em meio a essa gente, como aquela bela flor no meio do pântano ou como a flor feia que rompe o nojo e o ódio, do poema do Drummond, que não morre, mesmo entre os desafortunados.
Aprendeu que muitos desses homens eram mais livres moralmente do que os senhores de escravos de seu país. E pôde resgatar toda a sua dignidade humana nesse convívio. Foi ajudado, respeitado pelos colegas de prisão, que o consideravam superior por ser um escritor de origem nobre e por sua natureza pacifista e bondosa. Já era famoso em toda a Rússia por seu primeiro romance, Gente pobre, escrito em 1845, aos vinte e quatro anos, obra que tocou o coração de gente pobre e gente rica.
A Rússia não foi somente a pátria de Dostoiévski, foi também sua casa e sua mãe. Mesmo preso, castigado por essa mãe, ele torcia para que o exército russo fosse vencedor nas guerras. Havia nele um forte sentimento de submissão a esse amor, reminiscência talvez do sentimento por sua mãe adorada, da mais tenra infância. Era russo acima de qualquer ideologia ou sentimento.
Russo ortodoxo e cristão ortodoxo. Temente a Deus, não se deixava intimidar por quem quer que fosse, não se curvava a ninguém e expressava suas opiniões com muita veemência e convicção. Epilético e impressionável desde criança, não suportava assistir aos castigos infligidos aos fujões e outros malfeitores da prisão, que eram castigados com mil, duas ou três mil vergastadas, levando muitos deles à morte. Costumava ter crises nessas ocasiões. Era demais para ele. Mas, milagrosamente, aguentou os quatro anos na colônia correcional, ficando, como era de se esperar, marcado para sempre, até em seus tornozelos, como Édipo.
A Bíblia foi sua companheira, sua força espiritual nessa casa de mortos, onde viveu apartado dos homens livres. Foi obrigado a cumprir mais seis anos de pena no regimento do exército russo, ainda na Sibéria, com a divisa vermelha no quepe, marca dos prisioneiros. E lá, de farda, como oficial, conheceu a primeira mulher de sua vida ,Maria Dmtrievna, com quem se casaria e viveria alguns anos.
Embora nascido na religiosa Moscou, ao ser libertado, foi para a intelectual São Petersburgo, onde se integrou rapidamente à intelligentsia e dedicou-se à escrita de sua literatura, cada vez mais reflexiva e profunda. Lá, escreve Recordações da casa dos mortos, livro que causaria profunda comoção na grande pátria russa, e depois no mundo inteiro.
Sempre com as marcas das correntes nos tornozelos, e com marcas mais fortes ainda na alma, elevou a literatura confessional a alturas nunca vistas antes. O sofrimento por que passou deu não só humanidade à obra, mas sobretudo autorizou-o a falar em nome dos pobres e marginalizados, a coroa de espinhos da sociedade russa. E de toda a sociedade humana.
*Vera Lúcia Oliveira é professora de literatura