Equilibrada entre o dito cinema de arte e a predisposição de verter o entretenimento de alcance amplamente popular, a sétima arte, ao longo do ano, se viu desafiada na linguagem: se cinema é som, movimento e luz (especialmente aquela saturada de cores e densidade); alguns títulos, de sucesso, subverteram a ordem. Praticamente sem som, Um lugar silencioso foi chamativo nas bilheterias e na quantidade de sustos proporcionados neste terceiro filme conduzido pelo ator John Krasinski. Prestigiado com uma mostra na capital, o cinema em preto e branco de Phillipe Garrel, de histórias intensas e breves, esteve representado em duas obras: À sombra de duas mulheres e Amante por um dia.
Também desdobrado se viu o talento de uma trinca de diretores que lançaram, ao todo, seis títulos. Mago da excelência da diversão, Steven Spielberg imprimiu a dobradinha The Post e Jogador número 1 , respectivamente, tratados sobre a liberdade de imprensa e as mazelas de uma vida excessivamente virtual. No Brasil, José Alvarenga Jr. teve cacife para apresentar a cinebiografia ficcionalizada de Éder Jofre (10 segundos para vencer) e o drama libertário Intimidade entre estranhos. Colega de profissão, o cineasta Gustavo Bonafé assinou Legalize já: Amizade nunca morre (sobre primórdios da Planet Hemp) e o incendiário O Doutrinador, em que um justiceiro condena à morte políticos corruptos.
Num ano de ânimos exaltados, o confronto de um refugiado e um homem intolerante, protagonistas de O insulto, cavou a primeira indicação ao Oscar para o Líbano, na categoria de filme estrangeiro. Embate contra racismo e opressão a personagens femininas deram as caras nos enredos de filmes indispensáveis a qualquer lista de 2018: da heroica trajetória de Pantera Negra à candente denúncia de Spike Lee, com Infiltrado na Klan, passando ainda pela nova aposta do diretor Steve McQueen com As viúvas, estrelado pela ótima Viola Davis.
A magia no cinema
Unanimidade de crítica e de arrecadação, Vingadores: Guerra infinita congregou dois quesitos valorizados na atualidade: é filme de herói (de legiões de heróis, na verdade) e é continuação. Ainda assim surpreendeu nas bilheterias, valorizado pela renda de mais de US$ 2 bilhões. Provando que seriedade não está necessariamente vinculado a heroísmo, três longas explodiram nas bilheterias nacionais: Os Incríveis 2 injetou US$ 37,5 milhões no mercado, enquanto a mesma quantia resultou na soma dos êxitos de Deadpool 2 e do anti-herói Venom. Enquanto extensões de universos conhecidos por cinéfilos como o mundo de Harry Potter e os dinossauros do produtor Spielberg alimentaram as obras Animais fantásticos: Os crimes de Grindelwald e Jurassic World: reino ameaçado, graças ao talento do esteta e cineasta Wes Anderson, a inventividade reinou na animação premiada no Festival de Berlim, com Ilha dos cachorros.
Mulheres no comando
Numa monumental interpretação, valorizada no Festival de Cannes, a alemã Diane Kruger roubou a cena com o drama de vingança Em pedaços, num caso de personagem controverso, a exemplo da premiada com o Oscar Frances McDormand (Três anúncios para um crime). Também investindo fundo nos desdobramentos da maternidade, Charlize Theron fez do longa Tully um título singular, mas ainda longe do caso de polícia registrado no nacional As boas maneiras, em que um menino lobisomem une personagens de Isabél Zuaa e Marjorie Estiano.
Polêmicas também nutriram o trio de filmes nacionais com direção de mulheres Aos teus olhos, O animal cordial e O banquete. No primeiro filme, a diretora Carolina Jabor planta a dúvida em torno de um professor pedófilo, enquanto nos outros dois filmes pesam as contradições sociais e os confinamentos, nas fitas dirigidas por Gabriela Amaral e Daniela Thomas.
No exterior, brilharam a afroamericana Dee Rees, responsável por Mudbound, e a ganhadora dos prêmios Goya, Isabel Coixet, que assinou o drama A livraria; além de Agn;s Varda (ao lado do codiretor JR), que comandou as filmagens de Visages, villages, um documentário sobre o culto à imagem e a importância de trabalhadores periféricos.
A arte que alimenta
Mesmo fora do Oscar, que poderia colocar o Brasil entre os candidatos, O Grande Circo Místico fez bonito no Festival de Cannes, com o prestígio do diretor Cacá Diegues em alta, por uma sessão especial. A mesma Academia que vota o Oscar, certamente, incluirá entre finalistas dois longas lucrativos que comungam com o ideal de transformação da arte na vida do público: Nasce uma estrela, capaz de colocar Lady Gaga noutro patamar de estrela, e Bohemian Rapsody, filme que cristaliza a afinidade entre Freddie Mercuy e aqueles antenados em música. Com ácido humor voltado ao mundo dos museus, The square: A arte da discórdia também chamou a atenção, colocando a Suécia entre os finalistas do Oscar de 2018. Na contramão do êxito da vida particular, Roman Polanski (diretor expulso da Academia, por acusações de assédio sexual) lançou o intrigante Baseado em fatos reais que adentrou a criação na literatura, mesmo caso de tema do nacional Hilda Hilst pede passagem, um dos achados do ano entre os documentários. Explorando o mundo do cinema, destacaram-se Artista do desastre, uma comédia trágica, e Bergman ; 100 anos, fiel às densas narrativas do sueco.
Amores que importam
Muitas vezes relegadas ao segundo plano ou temas para enredos de discriminação, os amores homossexuais ou de grupos marginalizados como o dos idosos despontaram com a relevância de filmes como As herdeiras, sobre um casal lésbico separado por questões financeiras, e Ella & John, que contou com o magistral brilho dos veteranos Donald Sutherland e Helen Mirren. Baseado em fatos, em 120 batimentos por minuto, o diretor Robin Campillo agrupou os impulsos e a solidariedade que nortearam os integrantes do movimento Act Up, elementares para frenar a disseminação da Aids, indo contra ações vis da indústria farmacêutica e o império de desinformação. A afirmação sexual, no cinema, guiou personagens igualmente expressivos de Tinta bruta; Com amor, Simon e Desobediência, este último dirigido pelo chileno vencedor do Oscar Sebastián Lelio. Irrelevante na forma e na origem ou mesmo no modelo de corpos, o amor prevaleceu na trama de Todo dia, adaptação da obra de David Levithan.
Jornadas solitárias
A obsessão fez morada em vários títulos apresentados ao longo de 2018. Com a chancela do bem-sucedido diretor de La la land, Damien Chazelle, O primeiro homem mostrou o meticuloso preparo de Neill Armstrong (Ryan Gosling) rumo à Lua. Outro ator que resplandeceu foi Daniel Day-Lewis, tido agora como aposentado, depois de Trama fantasma, em que implantou e passou miséria na construção de uma musa para os vestidos de grife que seu protagonista idealizou no longa de Paul Thomas Anderson. A princípio solitário e autocentrado, o eternizado tipo marrento criado por Harrison Ford (em Star wars) ganhou a juventude de Alden Ehrenreich, em Han Solo: Uma história Star Wars, prequel (trama anterior) do filme de sucesso de 1977. Bebendo diretamente do êxito setentista de John Carpenter e da atriz Jamie Lee Curtis, Halloween reprocessou os traumas de uma jovem, passados 40 anos de ação na vida real e na trama do clássico filme de terror.
As dores do crescimento
O melhor filme de animação, de longe, foi Viva ; A vida é uma festa, que colocou em primeiro plano costumes mexicanos e a vida de um menino vocacionado para a música, mas tolhido pela família. Igualmente impulsionado por dissabores entre parentes, Custódia, de Xavier Legrand (melhor diretor, no Festival de Veneza), colocou o personagem do jovem Thomas Gioria na posição de bola de pingue-pongue entre pais que orquestram uma separação. Ciganos da Ciambra foi outro título ; a exemplo do inesquecível Projeto Flórida ; que revelou uma infância amargurada, trazendo uma espécie de decalque da vida de um Pixote, nascido no sul da Itália.