Diversão e Arte

Com filmografia de forte erotismo, Bertolucci, morto ontem, passou pelo DF

O celebrado diretor italiano, morto em decorrência de câncer, esteve na capital, em 1994, para receber um Candango especial

Ricardo Daehn
postado em 27/11/2018 06:44

Bernardo Bertolucci apresentou uma das cargas narrativas mais eróticas, por meio do cinema

Há quem possa tentar reduzir as criações cinematográficas de Bernardo Bertolucci, morto, ontem, aos 77 anos, ao potencial de escândalo e morbidez. E, numa passada de olho nas obras que ele criou, talvez esta seja uma marca forte, longe de ser a definitiva na carreira do artista que morreu em Roma, em decorrência de câncer. Bertolucci, no cinema, produziu cenas inacréditáveis em que a musa Maria Schneider comeu o pão que o diabo amassou, ao lado de Marlon Brando, na lúgubre visão de amor torto pregado em O último tango em Paris (1972); foi o diretor italiano quem ainda colocou em cena a tragédia da loucura e do abandono da personagem de Debra Winger nos desertos africanos, em O céu que nos protege (1990) e, mais recentemente, no retrato de uma Paris inflamada, Bertolucci colocou em cena, despidos, três corpos de jovens atores que excitaram a plateia, ao perfilar Louis Garrel, Eva Green e Michael Pitt como Os sonhadores (2003). Tudo isso, sem contar do filme tabu La luna (1979) em que uma artista viúva mantinha relações sexuais com o filho de 15 anos.

Sem tarjas e longe de convenções morais, o diretor provocou, mas nunca com traçado inconsistente. Ainda que espraiados no afã voyeurístico de qualquer cinéfilo, farto, na exploração do sexo, o diretor nunca largou dos elementos comuns à sempre crítica produção do cinema italiano, valorizando laços familiares, a opressão e o caráter essencial da política.

Os sonhadores (2003), filme com Michael Pitt e Louis Garrel

Curiosamente, foi outro artista desprezado pelos conservadores, o amigo Pier Paolo Pasolini, que impulsionou Bertolucci para a telona: no clássico Accatone ; Desajuste social (1961), Bertolucci serviu como assistente de Pasolini, enquanto, na estreia de Bertolucci em longas (A morte, de 1962) ambos dividiram a tarefa de roteiristas. Na trama, era encenado o rigoroso processo investigativo que pretendia elucidar a morte de uma prostituta, em Roma. Muito se misturava, entre verdades e memórias recriadas.

Houve uma circunstância em que, defendendo parte da carreira, Bertolucci impôs, publicamente, o valor da liberdade, celebrando a capacidade de "esconder atrás de álibes sociais e políticos". O discurso parecia exatamente reiterar o que ele expressou como diretor de O conformista (1970), em que um funcionário público (Jean-Louis Trintignant), afundado na era do fascismo de Mussolini, é escalado para matar um professor que, no passado, admirava. Um estudo sobre o peso da consciência, extraído da literatura de Alberto Moravia, ganha uma das mais belas direções de fotografia a cargo do esteta Vittorio Storaro (colaborador de Bertolucci em nove ocasiões).

Tendo cursado literatura moderna e influenciado pelo pai, o poeta Attilio Bertolucci, também crítico de arte, Bernardo desenvolveu, até por ser roteirista experiente, descomunais enredos de filmes que ultrapassavam três horas de projeção. Celebrado pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, com nove prêmios Oscar, O último imperador (1987) foi das extensas obras de cinema. Nela, o espectador acompanha um menino chinês criado como divindade para assumir um cargo político e social em que não se sustentará, tornado inclusive prisioneiro político. Na mesma linha de desvendar uma trajetória espiritual, Bertolucci investiu forças para a elaboração de O pequeno Buda (1993), estrelado por Keanu Reeves. O empreendedorismo épico também foi revelado no desenvolvimento de 1900. Foi a organização do Festival de Veneza (que em 2007 entregou um Leão de Ouro pela carreira do diretor) quem primeiro estabeleceu Bertolucci nos centro das atenções, com a inclusão de Partner (1968) no evento competitivo. Em cena, um estudante reproduz parte do confronto com seu duplo ; numa adaptação de obra Dostoiévsky ;, ao tatear os caminhos de protestos e de luta social.

O último tango em Paris: cenas escandalosas e que foram tidas como reais pelos espectadores

Único diretor italiano a vencer Oscar de direção, Bertolucci usou a literatura como base, em muitas das criações: dos relatos do nobre Pu Yi criou O último imperador, enquanto textos de Stendhal (A cartuxa de Parma) lhe forneceram elementos para a investida em Antes da revolução (1964), em que um burguês, que nutre amor pela tia, revê muitos dos conceitos de vida, a partir do suicídio de um amigo. Este filme foi selecionado para a Semana da Crítica do Festival de Cannes, no qual Bertolucci teve dois filmes menores exibidos dentro da mostra central: Beleza roubada (1996), em que a personagem de Liv Tyler descobre a sexualidade e lida com a perda da mãe suicida, e A tragédia de um homem ridículo (1981), em que um pequeno produtor de queijos fica num impasse a partir do sequestro do filho dele, por terroristas.

A morte, uma das constantes cravadas em muitos dos filmes de Bertolucci, nutriu entre outras, a trama de A estratégia da aranha (1970), clássico adaptado da obra do argentino Jorge Luis Borges em que um jovem se enreda ao tentar entender motivações e esquema que matou o pai dele, décadas antes, sob o regime fascista. Celebrado com homenagem especial no Festival de Cannes de 2011, Bertolucci ainda pode, mesmo usando cadeira de rodas (diante de sucessivas cirurgias sofridas) conduzir o derradeiro filme, em 2012, Eu e você ; obra que recria a literatura de Niccol; Ammaniti e é centrada na vida de um jovem entediado com os companheiros, que busca abrigo num porão, cenário para algumas experiências amorosas.

Passagem candanga

No ano em que o cinema brasiliense foi festejado no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, com a vitória de Louco por cinema (de André Luiz Oliveira), em 1994, um convidado ilustre quase roubou a festa: era Bernardo Bertolucci, esocolhido para receber um prêmio Candango especial. Antes de assistir ao filme italiano Trópicos (de Gianni Amico), Bertolucci recebeu a deferência, brincando que se tratava do "10; Oscar" recebido na carreira, em referência aos prêmios dados ao longa O último imperador (1987).

Depoimento

O cinema sem arte

José Carlos Vieira

Num mundo de franquias, streamings e algoritmos que definem o tamanho de histórias e personagens... Num mundo em que há cada vez menos diretores de cinema, realizadores e cineastas, mas sim ;empregados de estúdio;, a morte de Bernardo Bertolucci é uma tragédia para quem ama a sétima arte. Faço parte da geração que se encantou com Novecento, longa em que ele retratou a história da Itália entre o fascismo e o comunismo. A trajetória de dois amigos nascidos em 1900, de classes sociais distintas, que enfrentam todas as mazelas e revoluções do século 20, mas que se mantêm unidos umbilicalmente pelo amor ao próximo.

Enfrentei filas nas grandes salas de exibição para assistir a O último tango em Paris e me impactar (é este o termo certo) com a trama e o drama tecidos pelo maestro Bertolucci. A melancolia e o estranho amor autodestrutivo de Marlon Brando e Maria Schneider dominavam as discussões nas mesas de bares, depois das sessões. Era um tempo de descoberta e de rebeldia. O cineasta italiano, filho do poeta Attilio Bertolucci, tirava a alma dos seus atores, como dizia Brando. Almas que viraram poemas imagéticos da sétima arte.

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