Há quem possa tentar reduzir as criações cinematográficas de Bernardo Bertolucci, morto, ontem, aos 77 anos, ao potencial de escândalo e morbidez. E, numa passada de olho nas obras que ele criou, talvez esta seja uma marca forte, longe de ser a definitiva na carreira do artista que morreu em Roma, em decorrência de câncer. Bertolucci, no cinema, produziu cenas inacréditáveis em que a musa Maria Schneider comeu o pão que o diabo amassou, ao lado de Marlon Brando, na lúgubre visão de amor torto pregado em O último tango em Paris (1972); foi o diretor italiano quem ainda colocou em cena a tragédia da loucura e do abandono da personagem de Debra Winger nos desertos africanos, em O céu que nos protege (1990) e, mais recentemente, no retrato de uma Paris inflamada, Bertolucci colocou em cena, despidos, três corpos de jovens atores que excitaram a plateia, ao perfilar Louis Garrel, Eva Green e Michael Pitt como Os sonhadores (2003). Tudo isso, sem contar do filme tabu La luna (1979) em que uma artista viúva mantinha relações sexuais com o filho de 15 anos.
Sem tarjas e longe de convenções morais, o diretor provocou, mas nunca com traçado inconsistente. Ainda que espraiados no afã voyeurístico de qualquer cinéfilo, farto, na exploração do sexo, o diretor nunca largou dos elementos comuns à sempre crítica produção do cinema italiano, valorizando laços familiares, a opressão e o caráter essencial da política.
Curiosamente, foi outro artista desprezado pelos conservadores, o amigo Pier Paolo Pasolini, que impulsionou Bertolucci para a telona: no clássico Accatone ; Desajuste social (1961), Bertolucci serviu como assistente de Pasolini, enquanto, na estreia de Bertolucci em longas (A morte, de 1962) ambos dividiram a tarefa de roteiristas. Na trama, era encenado o rigoroso processo investigativo que pretendia elucidar a morte de uma prostituta, em Roma. Muito se misturava, entre verdades e memórias recriadas.
Houve uma circunstância em que, defendendo parte da carreira, Bertolucci impôs, publicamente, o valor da liberdade, celebrando a capacidade de "esconder atrás de álibes sociais e políticos". O discurso parecia exatamente reiterar o que ele expressou como diretor de O conformista (1970), em que um funcionário público (Jean-Louis Trintignant), afundado na era do fascismo de Mussolini, é escalado para matar um professor que, no passado, admirava. Um estudo sobre o peso da consciência, extraído da literatura de Alberto Moravia, ganha uma das mais belas direções de fotografia a cargo do esteta Vittorio Storaro (colaborador de Bertolucci em nove ocasiões).
Tendo cursado literatura moderna e influenciado pelo pai, o poeta Attilio Bertolucci, também crítico de arte, Bernardo desenvolveu, até por ser roteirista experiente, descomunais enredos de filmes que ultrapassavam três horas de projeção. Celebrado pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, com nove prêmios Oscar, O último imperador (1987) foi das extensas obras de cinema. Nela, o espectador acompanha um menino chinês criado como divindade para assumir um cargo político e social em que não se sustentará, tornado inclusive prisioneiro político. Na mesma linha de desvendar uma trajetória espiritual, Bertolucci investiu forças para a elaboração de O pequeno Buda (1993), estrelado por Keanu Reeves. O empreendedorismo épico também foi revelado no desenvolvimento de 1900. Foi a organização do Festival de Veneza (que em 2007 entregou um Leão de Ouro pela carreira do diretor) quem primeiro estabeleceu Bertolucci nos centro das atenções, com a inclusão de Partner (1968) no evento competitivo. Em cena, um estudante reproduz parte do confronto com seu duplo ; numa adaptação de obra Dostoiévsky ;, ao tatear os caminhos de protestos e de luta social.
Único diretor italiano a vencer Oscar de direção, Bertolucci usou a literatura como base, em muitas das criações: dos relatos do nobre Pu Yi criou O último imperador, enquanto textos de Stendhal (A cartuxa de Parma) lhe forneceram elementos para a investida em Antes da revolução (1964), em que um burguês, que nutre amor pela tia, revê muitos dos conceitos de vida, a partir do suicídio de um amigo. Este filme foi selecionado para a Semana da Crítica do Festival de Cannes, no qual Bertolucci teve dois filmes menores exibidos dentro da mostra central: Beleza roubada (1996), em que a personagem de Liv Tyler descobre a sexualidade e lida com a perda da mãe suicida, e A tragédia de um homem ridículo (1981), em que um pequeno produtor de queijos fica num impasse a partir do sequestro do filho dele, por terroristas.
A morte, uma das constantes cravadas em muitos dos filmes de Bertolucci, nutriu entre outras, a trama de A estratégia da aranha (1970), clássico adaptado da obra do argentino Jorge Luis Borges em que um jovem se enreda ao tentar entender motivações e esquema que matou o pai dele, décadas antes, sob o regime fascista. Celebrado com homenagem especial no Festival de Cannes de 2011, Bertolucci ainda pode, mesmo usando cadeira de rodas (diante de sucessivas cirurgias sofridas) conduzir o derradeiro filme, em 2012, Eu e você ; obra que recria a literatura de Niccol; Ammaniti e é centrada na vida de um jovem entediado com os companheiros, que busca abrigo num porão, cenário para algumas experiências amorosas.
Passagem candanga
No ano em que o cinema brasiliense foi festejado no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, com a vitória de Louco por cinema (de André Luiz Oliveira), em 1994, um convidado ilustre quase roubou a festa: era Bernardo Bertolucci, esocolhido para receber um prêmio Candango especial. Antes de assistir ao filme italiano Trópicos (de Gianni Amico), Bertolucci recebeu a deferência, brincando que se tratava do "10; Oscar" recebido na carreira, em referência aos prêmios dados ao longa O último imperador (1987).
Depoimento
O cinema sem arte
José Carlos Vieira
Num mundo de franquias, streamings e algoritmos que definem o tamanho de histórias e personagens... Num mundo em que há cada vez menos diretores de cinema, realizadores e cineastas, mas sim ;empregados de estúdio;, a morte de Bernardo Bertolucci é uma tragédia para quem ama a sétima arte. Faço parte da geração que se encantou com Novecento, longa em que ele retratou a história da Itália entre o fascismo e o comunismo. A trajetória de dois amigos nascidos em 1900, de classes sociais distintas, que enfrentam todas as mazelas e revoluções do século 20, mas que se mantêm unidos umbilicalmente pelo amor ao próximo.
Enfrentei filas nas grandes salas de exibição para assistir a O último tango em Paris e me impactar (é este o termo certo) com a trama e o drama tecidos pelo maestro Bertolucci. A melancolia e o estranho amor autodestrutivo de Marlon Brando e Maria Schneider dominavam as discussões nas mesas de bares, depois das sessões. Era um tempo de descoberta e de rebeldia. O cineasta italiano, filho do poeta Attilio Bertolucci, tirava a alma dos seus atores, como dizia Brando. Almas que viraram poemas imagéticos da sétima arte.