Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Fernanda Montenegro: Há uma nova era, com ciência e tecnologia dominando

Fernanda Montenegro vai participar de bate-papo com os brasilienses durante o lançamento de sua fotobiografia, que faz um apanhado da carreira e da história do teatro brasileiro



Fernanda Montenegro brinca que, em O outro lado do paraíso, última novela na qual atuou, havia quase 500 anos em cena. Ao se somar as idades da atriz, 89 anos, com as de Laura Cardoso, Lima Duarte, Nathália Timberg e Juca de Oliveira, todos no elenco da produção, chega-se a 440 anos. É toda uma geração cuja trajetória representa a história do teatro brasileiro moderno, uma história que, para Fernanda, está próxima do fim.

As novas tecnologias trouxeram outras formas de relacionamento e, com elas, caminhos diferentes para a arte de forma geral. "Há uma nova era, há uma ciência e tecnologia dominando tudo", repara a atriz, em entrevista ao Correio. "Isso não quer dizer que o teatro de palco, de ser humano diante de outro ser humano, vá morrer. Mas, diante da crise geral do país, o que está acontecendo é que tem sempre monólogos, diálogos, triálogos. Alguma encenação com maior gente no elenco, mas a coisa está sobrevivendo nas catacumbas, entende?".

A história da atriz, que Caetano Veloso chama de "dama civilizadora", e de sua geração está contada em Fernanda Montenegro: Itinerário fotobiográfico, que ela lança em Brasília na próxima terça-feira, às 19h, durante um bate-papo com o público no Teatro Sarah Kubitschek. Editado pelo Sesc, o livro nasceu de uma proposta da própria Fernanda e levou oito anos para ser realizado.

Inspirações


Em fotos, mas também em textos que vão de cartas da atriz a críticas, reportagens, poemas e escritos de personalidades da dramaturgia nacional, o material conta uma história que perpassa praticamente todos os momentos mais importantes do teatro, televisão e cinema no Brasil. ;Não sei como é que a minha geração conseguiu, porque não sou só eu. Quando vi as fotos, vi que tive a felicidade de ter trabalhado, praticamente, com toda a minha geração. Ainda peguei gerações anteriores, como é o caso de Dulcina (de Moraes), que vi representar. Além de Bibi Ferreira, que foi sempre um referencial do que eu queria ser um dia no palco. É uma memória também muito ligada ao Rio capital da República;, conta.

Fernanda vem de um tempo em que teatro era atividade presente no cotidiano, em que atores eram também empreendedores e em que se encenava os clássicos incansavelmente e se escrevia muito. Para ela, que foi a primeira atriz contratada pela televisão, em 1951, Nelson Rodrigues escreveu duas peças. O Beijo no asfalto nasceu especialmente para o Teatro dos sete, companhia fundada em 1959 por Gianni Ratto e integrada por Fernanda, Sérgio Britto, Ítalo Rossi e Fernando Torres, com quem casaria e dividiria a caminhada por 60 anos.

Fedra, Antígona, Medeia passaram pela interpretação da atriz, assim como Shakespeare, Beckett, Tchekov, Bernard Shaw e Luigi Pirandello. Entre os brasileiros, ela andou de mãos dadas com textos de Augusto Boal, Millôr Fernandes e, inúmeras vezes, Nelson Rodrigues. Na televisão, foram mais de 43 produções, entre novelas e minisséries e, no cinema, 42 filmes e uma indicação ao Oscar de melhor atriz por Central do Brasil, em 1999. ;Não fiquei só no palco, mas o palco é a base disso tudo, o teatro é a base disso tudo;, avisa a atriz. Em entrevista, ela fala sobre o momento atual do teatro brasileiro, os rumos políticos do país e da própria trajetória.

Que percepção fica quando a senhora olha para esse material do livro, um conjunto que cobre 75 anos de atuação e de história do teatro no Brasil?
Há todo um movimento, também amador que houve aqui, para os comediantes, isso na alta roda, mas todos os colégios, todas as faculdades faziam espetáculos como fechamento de um curso e isso acabou. A presença cultural e teatral, dessa forma acaba com a minha geração. Era o teatro presente. Os grupos amadores existiam em todas as classes sociais. É de uma outra era, de uma outra época. Isso não quer dizer que o teatro vá desaparecer. Não vai. Ele é eterno. Mas estamos em outra era. Quando Paulo Autran morreu, escrevi uma carta, que está nesse livro, e foi uma percepção de que aquela morte detonava o fim de uma era do teatro brasileiro que vem desde João Caetano. Em 1830, tínhamos oito anos de independência, e João Caetano, para ter brasileiro em cena, falando o português do Brasil e com autor brasileiro, fundou sua companhia. Se auto-empresariou com a mulher dele. Isso foi há 200 anos e está em sua finitude hoje em dia.


A senhora tem alguma nostalgia quando olha para essa outra era?

Existe a nostalgia do ser humano diante do ser humano. Hoje em dia, ninguém mais fala diretamente com ninguém. É só WhatsApp.


A senhora usa WhatsApp?

Eu me nego. Não é porque eu ache ruim não. É o momento. É a hora que se está vivendo. O botão é fundamental. Sem o botão, não existe vida no mundo hoje. Agora, eu faço uma profissão que necessita o outro ser humano diante de si. Na diversificação desse jogo ser humano diante de ser humano, houve também o botão, porque chegou o cinema por intermédio de um botão, chegou a televisão através de um botão. Há uma outra manifestação de comunicação humana eletrônica numa violência e numa presença mágica.


Se o teatro é como um artesanato e, eventualmente, uma obra de arte, como a senhora sempre fala, quando se dá conta que fez uma obra de arte?

Não sei falar, porque, inclusive, o que você faz não fica definido numa forma, num som para o resto da vida. A cada dia você apresenta o teu projeto diante de alguém. Um dia sai maravilhoso, outro dia não sai tão bom. Tem um espaço entre aquele dia que o espírito santo baixa e o outro dia, por mais que chame o espírito santo, ele não baixa. Mas você existe. Quando o espírito santo não baixa, fica o artesanato. No dia em que baixa, é a arte absoluta. É efêmero e é perseguido. Diariamente você se propõe a fazer uma arte absoluta. Há um desassossego eterno nisso. Não conheço ninguém de palco que viva tranquilo porque diariamente, as tantas horas, tem de chegar lá e fazer o seu momento de absoluta ambição à arte. Se sai só artesanato, já tá ótimo. E o dia que vem a glória de estar numa inspiração que você nem se vê representando, você embarca numa viagem a Júpiter.


Seu pai era artesão. Vem daí essa ideia de teatro como artesanato?

Meu pai foi um modelador mecânico. Artesão. Dominava a leitura de um desenho industrial, sabia tirar aquele desenho na madeira e no tempo dele não tinha peça para a fundição. Então, venho de um artesão maravilhoso, de grande qualidade. Faço minha profissão como meu pai fazia sua modelagem, só que a dele era industrial, e a minha é teatral. As coisas foram acontecendo. É essa coisa estranha, você está num lugar e algo te favorece naquele lugar. Você podia estar em outro lugar, podia ter virado uma outra esquina.

Como isso ocorreu?

Eu vim cedo para o mundo (do teatro), primeiro fui para uma rádio oficial, do Ministério da Educação e da Cultura que, na época do Getúlio, não eram áreas separadas. Uma área era idêntica à outra, e uma não existia sem a outra. O que eu acho que deveria ser até hoje. E vim pela vida afora, encontrei amigos e irmãos com quem convivi 70 anos enquanto viveram, e Fernando Torres, com quem vivi durante 60 anos e que era tão devoto ao teatro como eu. Enquanto ele existiu, eu fui a pessoa do palco. Ele era a pessoa do teatro, compreendia tudo do teatro como ator, diretor, empresário, animador cultural. Mas está terminando essa modalidade de teatro. O país devia ter um Ministério da Cultura e secretarias, porque tudo é cultura.


Qual a dificuldade em se valorizar a cultura no país?

Por que se valoriza mais alguma coisa? Se valoriza a saúde? Se valoriza o saneamento básico? Se valoriza a moradia para o desamparado? Há uma carência geral. Não é uma negação geral. Mas é sempre a propósito de se chegar a algum lugar ao qual nunca se chega. Crucificar o artista porque conseguiu usar uma ajuda dentro de um atendimento cultural? E isso não é só de agora, foi assim durante minha vida inteira. Sempre a cultura é culpada. O dinheiro que vai para a cultura podia ter ido para casa popular, para a agricultura, para o atendimento da saúde, para a educação. Agora, é uma miséria de verba. Só que é interessante: mesmo quando não há nenhum apoio, mesmo quando não há nada sendo oferecido, como no tempo do Collor, o saneamento não é feito, o atendimento de saúde não acontece.


O Brasil viveu um momento muito polarizado nas eleições: como ficou a relação entre os artistas que apoiaram um lado e os que apoiaram outro?

Como em todo setor do atendimento do cidadão: tem os prós e os contra. Por que seria diferente? Sempre se vê o artista como algo esquisito, desassossegado. Nós somos muito poucos no Brasil. Não sei por que tanta agressão em torno de tão poucos que nós somos.

Agressão em que sentido? O artista está sendo demonizado por causa dos incentivos públicos?

Todo mundo no Brasil está se demonizando. Então, vamos esperar passar isso. Estou com 90 anos, porque completei 89, estou a caminho dos 90, e sei que sempre tem ciclos. Um pra baixo, um pra cima, e desce, e sobe. Vai descendo e vai subindo, geralmente pensa-se que se está lá em cima e, de repente, desce-se novamente. Agora, ao ser humano, ao ser daquele país, o que ele tem de levar com ele é acordar e cantar. Ir pra luta, ir pra vida.


O machismo na dramaturgia mudou muito nos últimos 75 anos?

Acho que mudou a condição da mulher. O dia a dia nos propondo de uma forma radical, ou de forma mais passiva, mas a consciência do ser mulher existe de uma forma ampla neste país e acho que no mundo inteiro. E também menos, e poderia ser mais um pouco, mas também o lado do hétero, do macho, está tendo uma mudança porque ele é obrigado a ver, a entender e a lutar também a favor do feminino. E ainda têm as variações de todas as sexualidades que hoje em dia é uma discussão sadia.


O teatro, de certa forma, lhe dá vida?

Acho que gente de teatro tem vida longa, na sua maioria, porque é uma vida de grande presença física. E digo teatro de palco, não os eletrônicos, porque nos eletrônicos você faz aquele momento, senta, espera a luz, daqui a pouco faz outra cena. Falo da batalha que minha geração viu. Você ensaia cinco horas por dia, faz o espetáculo com dois, três atos, espetáculos de duas horas e meia. Minha geração, na madrugada, ensaiava e, às segundas, fazia televisão. Isso também dá uma necessidade de presença física. Não tem ginástica ou exercícios físicos como isso. Além do quê você se informa, caminha, vive com a palavra, tem de saber o que você fala, que sentimentos essa palavra está passando para o espectador.


Às vezes, a profissão de ator leva ao excesso de exposição. Ou exibição, como a senhora diz. Como fez para evitar isso?

A minha geração está fora do dizismo. Havia uma herança romântica do século 19. Quando chegou a essa geração à qual pertenço, o processo todo era muito mais de artesanato, lutando para se chegar ao artístico. Com companhias tituladas por ator e atriz, sempre no julgo teatral, vê-se quem é melhor. Às vezes, você pode ser um protagonista porque houve possibilidade de chegar ali, mas o coadjuvante resulta melhor. Isso também o teatro dá, o saber se conformar com a não glória eterna. É a computação de todos os anos de trabalho e, no fim de tantos anos, tem um cabedal de esforço, de vivência e de sobrevivência que é uma coisa a se observar. Eu diria notável no sentido de ser notado, observado.


A senhora passou por vários momentos políticos da história do país. O que a senhora diria para quem está apreensivo com os próximos quatro anos?

Eu acho que é o primeiro governo do botão. Esse governo veio pela internet. Sou do tempo que tinha que ter palanque na praça. O espaço do teatro era também um espaço político. Nos velhos tempos, era um bom lugar de encontro para o discurso da política. A grande novidade desse novo governo é que ele veio por um botão. Veio por um meio eletrônico.


E o que esperar disso?

Não sei te falar. Sou do tempo que não tinha rádio em casa. A gente visitava muito, toda hora se visitava. Porque esses elementos eletrônicos, através dos séculos, foram fechando as pessoas. Primeiro, dentro de casa. Agora, não mais dentro de casa. Você tem um aparelho no bolso, você não fala, manda mensagens.


E a senhora está apreensiva?

Mas todo dia, diante de qualquer governo, fico apreensiva. Acho que o ser humano, diante da vida, nunca deixa de estar apreensivo. Não vou separar isso só para a política. Temos uma demagogia eterna nos nossos governos de que, quando está no poder, todo os problemas estão resolvidos. E sempre que o governo sai, aí vê-se que não estava tudo resolvido. Que tem coisas penduradas, que tem coisas manipuladas. Na minha idade, esse eterno vaivém é uma coisa que não tem surpresa. Eu me pergunto: que governo não tem um lado maravilhoso e um lado horrendo? Talvez seja minha cabeça, que lida constantemente com dramaturgia. Em dramaturgia, você chega e analisa o bandido, o herói, os coniventes, os não coniventes, os coadjuvantes, o coadjuvante que passa a ser mais importante que o protagonista. Tenho uma deformação que é a minha profissão e vejo tudo do ponto de vista da dramaturgia.

SERVIÇO
Fernanda Montenegro: itinerário fotobiográfico
De Fernanda Montenegro. Edições Sesc, 500 páginas. R$ 160. Lançamento terça-feira (20/11), às 19h, no Teatro da Rede Sarah (Hospital Sarah Kubitschek, SHMS Quadra 301, conjunto A)