Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Cineasta fala sobre relação com autor do clássico 'A bagaceira'

Vladmir Carvalho fala sobre o esquecimento de José Américo, autor que trouxe um sopro de vigor para a ficção brasileira



O ano era o de 1928 e a temperatura do verão carioca já obrigava a fuga nos fins de semana para a serra petropolitana, em busca de alívio para a desconfortável canícula. Alceu Amoroso Lima, na plenitude de seu prestígio como crítico literário exponencial do movimento modernista de 22, não fugia à regra. Com a desconfiança ditada pela experiência acumulada, apanhou o volume sobre sua mesa de trabalho e o incluiu em sua bagagem de mão.

Era ;um livro feio, mal-impresso, em papel ordinaríssimo;, o título provocando troças, e pensou consigo mesmo que devia ser tal como o título insinuava. Uma mixórdia. No início da viagem, tirou-o da pasta e mostrou-o sem entusiasmo ao seu vizinho de banco, o também escritor Carlos Delgado de Carvalho, com um comentário ácido sobre a condição dos críticos obrigados, por dever de ofício, a examinarem tudo que lhe chegava às mãos, como era o caso daquele suspeitoso e provinciano A Bagaceira.

Entretanto, mal ultrapassara a paisagem bucólica da Quinta da Boa Vista, a leitura das primeiras páginas começou a lhe despertar súbito interesse, que foi num inesperado crescente, e ao passar por Triagem, ainda em pleno subúrbio, na cinzenta insipidez da Zona Norte, um alívio já lhe dominara o espírito e logo se transformou em franca empolgação. Enganara-se e reconhecia eufórico o equívoco, tendo ganas de confiar ao amigo do lado a sua descoberta acompanhada de generosos e explosivos adjetivos que lhe acudiam naquele instante revelador, mas se conteve.

Alcançadas as culminâncias da serra, praticamente devorara quase todo o volume e, ansioso, não via a hora de chegar a casa para lançar-se à escrita, dando conta da avassaladora impressão que experimentara. Concluída a leitura, vislumbrou no romance a sua frente nada menos do que a realização de uma obra-prima. O brado do seu texto parido num transe único, Romancista ao Norte, ribombou pelas quebradas das letras nacionais, abrindo a cortina para a repercussão e a glória de José Américo de Almeida, que após as maltrajadas edições, logo consumidas, da Imprensa Oficial da Paraíba, foi largamente compensado pelas caprichadas e repetidas reedições das editoras Castilho e Andersen, do Rio de Janeiro, sendo depois prodigamente adotado por José Olympio até os dias de hoje.

O mestre da crítica havia sido assertivo: ;Até minuto antes, a literatura brasileira estava vazia desse livro e de agora em diante já não pode viver sem ele. Seria diferente se não existisse. Como que pedia de certo modo este livro para completá-la;. E fechava com chave de ouro a sua judiciosa opinião afirmando que aquele seria o romance que Euclides da Cunha escreveria se fosse romancista, ;um Euclides da Cunha sutil e bárbaro a um só tempo. O romance daquilo de que Os Sertões foram a epopeia;.

Malraux

Alceu Amoroso Lima não sabia, mas suas palavras tinham algo de proféticas e prenunciavam o que A Bagaceira arrastaria em seu caminho luminoso, ou seja, todo um séquito de convictos seguidores que formariam o hoje óbvio ciclo do romance social de 30, com José Lins do Rego, Jorge Amado, Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos à testa. José Américo foi autor de mais dois livros de ficção, Boqueirão e Coiteiros (1935), em que continuava a se ocupar da terra e do homem nordestinos, no mesmo estilo candente em que muitas vezes se confundia a veia do criador imaginoso com o pensador social.

Nessa última condição, e com igual intensidade, ingressou também na política, e nesse outro cenário foi pau para toda obra, enfrentando os revoltosos de Princesa, em 1929. Assumiu a chefia da Revolução de 30 no Nordeste; foi ministro de Vargas na sequência da revolução e grande construtor de açudes para salvar os nordestinos da seca. Nessa jornada caiu no mar por ocasião do desastre do Savoya Marchetti, míope e sem saber nadar, tendo sido salvo por providencial saveiro. Candidato favorito à presidência, levou rasteira de Getúlio com o golpe de 1937 e dele se desforrou em 1945 com a célebre entrevista a Carlos Lacerda, que resultou na queda do ditador. Por isso o vejo como um André Malraux caboclo, igualmente dublê de intelectual e político na França de De Gaulle.

A amnésia nacional

Neste 2018 se completam os 90 anos do aparecimento de A Bagaceira, o mesmo em que se comemora outro marco do modernismo no Brasil e um outro monstro sagrado de nossas letras, o poeta Calos Drummond de Andrade, com seu poema No meio do Caminho. Os versos do bardo mineiro causaram grande celeuma e o poema foi chamado com deboche e preconceito de ;O poema da pedra;, mas marcou um momento de inflexão irreversível na história da nossa poesia. Por isso vem sendo celebrado com saraus e leituras pelo país afora, inclusive em Brasília por iniciativa da tradicional livraria Sebinho. Os cadernos de cultura não param de entoar loas ao nosso poeta máximo.

Mas quanto ao romance que foi como um divisor de águas na nossa ficção, não há até agora no plano nacional ; e o ano já vai se findando ; nenhum sinal que registre a importância da obra e do seu autor, de quem tive a sorte e a honra de traçar o perfil no cinema com o longa metragem O Homem de Areia, concluído dois meses após o seu falecimento, em março de 1980, aos 93 anos.

Com exceção da Academia Paraibana de Letras e da Fundação Casa de José Américo, ambas funcionando em João Pessoa sob o timão de Damião Cavalcanti, que vêm realizando cursos, conferências e exposições temáticas acerca da obra e do seu escritor. E a Academia Brasileira de Letras, que acolheu José Américo em seu quadro, eleito por unanimidade, e até agora guarda um incompreensível silêncio, não tem nada a dizer?

Vladimir de Carvalho é cineasta e dirigiu o documentário O homem de areia, sobre José Américo