Severino Francisco
postado em 22/10/2018 08:34
Depois de 18 livros dedicados à literatura infantojuvenil, Lucília Garcez decidiu se aventurar pelo território do romance, com Outono (Ed. Outubro). A ficção narra o drama da protagonista Ângela, viúva de um homem desaparecido durante a ditadura militar, que se envolve em uma nova relação amorosa, mas vive assombrada pelos traumas e fantasmas do passado. Ao reviver a vida, ela reconstitui os principais acontecimentos daquele período dramático da história brasileira.
Lucília era estudante da Universidade de Brasília (UNB), quando o câmpus foi invadido nos anos 1960. Ela não era militante, mas acompanhou tudo de perto. Lucília autografa Outono, hoje, às 19h, no Carpe Diem. Nesta entrevista, Lucília fala sobre a experiência de viver sob uma ditadura, a narrativa para evocar a repercussão daquele período na vida das pessoas e os poderes da ficção para mergulhar na alma brasileira.
Como foi sua iniciação à literatura?
Eu comecei a ler muito nova, quando um professor indicou Clarissa, de Érico Veríssimo. Meu pai comprava livro a metro. Li toda a obra de José de Alencar. Gosto muito de Proust, de Katherine Mansfield e de Virgínia Woolf. Mas não sei até que ponto as leituras influenciam na hora de escrever, pois é um ato muito espontâneo.
Ler apaixonadamente é algo que leva a escrever?
Eu demorei muito a ter coragem de me aventurar pelo romance. É uma tentação muito grande. Você começa a cair na tentação de escrever. Às vezes, demora. Primeiro, quis escrever livros que tivessem fundo educativo.
Como que se tornou uma escritora de literatura infantojuvenil?
Eu fui professora de formação de professoras de língua portuguesa. Lidava muito com literatura infantil. Quando me aposentei, aceitei um desafio do Jô Oliveira: ele disse que eu poderia escrever livros para as crianças e os adolescentes. Aceitei o desafio e já são mais de 18 livros para essa faixa de leitores.
E como resolveu escrever um romance sobre uma personagem que revive os acontecimentos do período
de ditadura militar?
É o seguinte: a literatura é um resultado da experiência de vida, observação e imaginação. Eu vi os anos da ditadura. Eu estava na UnB ,quando ela foi invadida. Conheci Honestino Guimarães. Foi um período muito intenso. Não era militante, mas observava aqueles jovens generosos, altruístas e combativos. Coincidentemente há pessoas pedindo a volta para os militares neste momento. O meu ponto de vista é mostrar o perfil de um militante, as consequências do autoritarismo, do arbítrio. A personagem principal é viúva de um desaparecido. Tenta retomar uma relação amorosa. Mas as cicatrizes de uma perda deixam-na em situação difícil para viver plenamente a experiência amorosa. Eles enfrentaram uma perseguição feroz.
Qual a relação entre história e ficção no livro?
Fiz uma pesquisa muito extensa sobre os acontecimentos, as músicas, os filmes que tratavam do tema. Corria o risco de se transformar em uma grande reportagem. Mas a ficção permite uma análise, o trabalho de reflexo dos acontecimentos na vida emocional das pessoas. Como reagiram e como enfrentaram as adversidades. Ela ultrapassa os atos e acontecimentos históricos e faz um mergulho na psicologia das pessoas. Analisa mais profundamente a repercussão na vida subjetiva. É um trabalho de elaboração muito delicado.
Como inventou uma narrativa para narrar o drama de uma mulher no romance?
Eu coloquei a personagem principal, uma mulher de 60 anos, se lembrando de tudo, do casamento, do desparecimento do marido. Ela se lembra de todos os fatos importantes da ditadura. Ela volta para lembrar, vai ao presente. Narra como se aproxima desse personagem mais jovem, começam uma relação amorosa, mas ela é afetada pela história vivida na ditadura. A montagem da narrativa tem muito a ver com esta proposta de recontar o passado e narrar o que está acontecendo no presente.
Embora trate de um tema dramático, a sua ficção tem uma linguagem fluída...
Não quis fazer nenhuma pirueta linguística na linha do Guimarães Rosa. Mesmo porque, ele é insuperável. Queria ser clara, objetiva e simples. Na literatura contemporânea existe uma perversidade com o leitor. Decidi que minha relação seria amigável.
Você acha que as consequências de uma ditadura se estendem através do tempo na vida das pessoas?
Acho que sim, quem sofreu algum tipo de trauma durante a ditadura nunca fica completamente uma pessoa curada. É muito difícil superar aquele sofrimento, aquela mágoa, aquela tragédia pessoal.
Você é professora e lidou muito com os jovens. O que aconteceu com as novas gerações? Elas se tornaram muito individualistas?
As coisas se transformaram muito, tínhamos um interesse comum, que era a liberdade, a volta ao Estado de direito. Eles comungavam das mesmas aspirações e utopias. Eles ficaram mais individualistas e consumistas. Os jovens enfrentam mais dificuldades para se colocar no mercado de trabalho. Percebo isso com os meus netos. Querem conseguir um emprego, toda energia vai para os problemas individuais, a transformação social fica em seguindo plano.
Como percebe a década de 1960 com a distância histórica?
É impressionante como os jovens eram generosos, se entregavam totalmente a uma causa. Hoje, a gente não vê as pessoas assim. Não mediam esforços e não tinham medo de se arriscar para defender os pontos de vista, para reconquistar a liberdade e o Estado de direito, eles eram muito admiráveis. Na década de 1960, as pessoas queriam um mundo melhor para todos, não só para si.
Neste momento, existem pessoas invocando uma ditadura militar para resolver os problemas do Brasil. Como percebe esse movimento?
Acho que é uma desinformação histórica quando propõe a volta dos militares. É uma ignorância histórica, não tem noção da censura à imprensa, da perseguição aos artistas. O nível de escolarização muito baixo e as pessoas que não passaram por esse período têm a tendência a esquecer. Existe a ameaça dos livros de 1964 serem recolhidos. É importante registrar de todas as maneiras possíveis para que isso não venha a acontecer. A gente tem de avançar, não podemos retroceder.
Outono
Lucília Garcez/Ed. Outubro 183 páginas. Lançamento, hoje, às 19h, no Carpe Diem (104 Norte)
"Eu coloquei a personagem principal, uma mulher de 60 anos, se lembrando de tudo, do casamento, do desparecimento do marido. Se lembra de todos os fatos importantes do regime militar. Ela volta para lembrar, vai ao presente".