Nahima Maciel
postado em 21/10/2018 06:30
Era uma utopia que os porcos Bola de neve e Napoleão queriam criar em A revolução dos bichos, de George Orwell. Eles reúnem a bicharada e a convencem do projeto mas, lá pelas tantas, Napoleão, seduzido pelo poder, dá um golpe. A revolução descamba para o totalitarismo e Orwell não hesita em ser panfletário para tratar do tema. A história, um clássico da literatura de língua inglesa, parecia se encaixar perfeitamente em um quadrinho, por isso o ilustrador gaúcho Odyr Bernardi topou o convite da Companhia das Letras para ilustrar o romance. ;É um livro ideal no que se propõe. Tão ambicioso em seus temas, tão acessível como narrativa ao escolher o formato da fábula. E tão rico em possibilidades visuais, com esse elenco fantástico de animais e cenários naturais;, conta Odyr.
O resultado é um livro, como diz o autor, visualmente aberto e acessível. Em páginas inteiras e duplas, com pouquíssima divisão em quadros e desenhos que remetem aos livros infantis, Odyr consegue tornar a história acessível até mesmo para aqueles que não estão acostumados com quadrinhos. Como o texto do romance é curto, ele não precisou adaptá-lo: a escrita original de Orwell é transportada para as ilustrações com alguns cortes, já que a linguagem dos quadrinhos exige um tratamento mais sintético. Mas está lá a crítica do escritor britânico, que escreveu o livro como uma crítica à ascensão do stalinismo na ex-União Soviética. Tal qual nas fábulas, os bichos representam as fragilidades humanas de uma maneira satírica e caricatural.
Odyr lembra que, para um texto curto como é o original, um número incrível de coisas acontecem. ;Minha ideia era fazer justiça ao original ; ser como uma espécie de livro infantil para adultos;, diz o quadrinista. ;E queria achar um equilíbrio com os animais ; não exatamente realistas, mas realistas o suficiente para que suas existências tivessem peso e significado e as pessoas pudessem se identificar com suas desventuras.; No processo de escolha dos episódios, ele selecionou o que apresentava possibilidade de desenvolvimento e parecia mais importante.
A revolução dos bichos é o terceiro livro de Odyr realizado com roteiro escrito por outro autor. Em Copacabana, o roteirista Sandro Lobo foi o responsável pelo texto, um policial sobre a decadência do bairro carioca. Com Angélica Freitas, o quadrinista fez Guadalupe. ;Não tenho um forte impulso narrativo. É um conforto trabalhar com o texto dos outros ;tudo está mapeado, você tem claros pontos de referência, sabe aonde vai chegar. De uma certa forma, é muito libertador. Te permite se concentrar na visualização ao longo da jornada, na clara narrativa, nas melhores imagens. Cada dia você pega um trecho e faz o seu melhor a partir dele, sabendo que a estrutura geral da coisa já está resolvida;, explica o artista. Para ele, adaptar um quadrinho a partir de um clássico da literatura permite brincar com as fronteiras entre as linguagens, mas é preciso ter sempre em mente a necessidade de criar um valor agregado, ;algo com vida própria;. ;Senão, você estaria simplesmente criando um resumo para preguiçosos;, acredita.
A revolução dos bichos
De George Orwell. Quadrinhos de Odyr. Companhia das Letras, 176 páginas. R$ 69,90
TRÊS PERGUNTAS / Odyr
Qual a atualidade do texto de George Orwell?
Não creio, infelizmente, que vá haver um período da humanidade onde o livro venha a ser obsoleto. A liberdade está sempre sob ameaça, o poder sempre corrompe e as pessoas estão sempre inclinadas a aceitar as soluções mais fáceis. Mas, obviamente, seus temas são urgentes nesses dias, com um candidato francamente ameaçando nossa democracia, um espírito de violência e fascismo nas ruas sendo abraçado por uma parcela significativa de nossa população.
Você disse, em uma entrevista, que a humanidade precisa de conforto e de confronto. Enxerga essa dualidade em A revolução dos bichos?
Acho que você se refere a uma divisão que vi pela primeira vez explicada pelo Ziraldo ; que havia artistas que sentiam como sua missão trazer beleza para o mundo e outros, apontar suas injustiças. E que os dois seriam igualmente importantes. O que gerou algum conflito para mim, na verdade, porque me sinto parte do primeiro grupo e Orwell é claramente do segundo ; Orwell não se incomodava nem com ser chamado de panfletário, para ele era isso mesmo, seu trabalho tem esse espírito de denúncia. Tentei conciliar esses dois impulsos ; trazendo beleza e alegria onde possível, mas conformado com o fato de que Orwell tem uma agenda, coisas que ele tão claramente quer dizer e que são coisas sombrias e necessárias.
E no Brasil contemporâneo, como estamos de conforto e confronto?
Que tempos são esses que falar de árvores é quase um crime, dizia o Brecht. É o momento em que estamos ; a urgência dos fatos não dá muito espaço para a beleza. O sujeito tem praticamente vergonha de postar uma pintura na internet, quando o mundo está pegando fogo. O que é compreensível, mas há que se achar um equilíbrio entre o horror e a alegria ou a vida não vale a pena.