Diversão e Arte

Fabrício Carpinejar divide o palco com o pai em recital de poesia

O escritor montou espetáculo em que recebe o pai, o poeta Carlos Nejar

Nahima Maciel
postado em 27/09/2018 06:45

Fabrício Carpinejar e o pai, Carlos Nejar, sobem ao palco para recital

Fabrício Carpinejar nunca se sentiu ofuscado pela poesia do pai, Carlos Nejar, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), que indicou seu nome para o Nobel em 2017. Ao contrário, gosta muito de sair dizendo por aí de quem é filho. Pudera. Nejar não é apenas membro da ABL, é um poeta de peso, com uma obra que ultrapassa 50 livros e uma referência na poesia gaúcha. É esse sujeito, que ;não sabe conversar de longe;, tem 1,80, e usa boinas ;como forma acolchoada de pássaro; e não sabe fazer piadas, apenas contar estórias, que Carpinejar leva para o palco no espetáculo Poesia de pai para filho ; Encontro de duas gerações.

Com apresentação única amanhã no Teatro dos Bancários, a montagem é um recital que mistura teatro e poesia para celebrar os 20 anos de carreira de Carpinejar e os 60 de seu pai. ;É um recital, um encontro da minha poesia com a poesia do meu pai. Sempre tive esse sonho, que parecia inalcançável, de estar no mesmo palco que meu pai. É a primeira vez que isso acontece;, conta o autor de Cuide dos pais antes que seja tarde.

Uma lembrança de infância dá início ao encontro. Quando chovia e todos fechavam portas e janelas e se abrigavam no interior das casas, Nejar convidava o filho para contar relâmpagos. A partir dessa memória, se desenvolve um diálogo pontuado pelos poemas e pelo improviso. ;Toda a dramaturgia está centrada em histórias familiares, e o pai é o centro recitando seus poemas. Meus poemas serão conversados. E os poemas do pai serão recitados;, avisa Carpinejar.

Recitar, aliás, é ponto importante do espetáculo. Para pai e filho, é uma habilidade. ;Passei minha infância acostumado a ver meu pai recitando seus versos em voz alta e nunca achei que fosse loucura, porque a poesia tem essa solidão de conversar consigo. É uma saúde conversar consigo, falar consigo em voz alta. Sempre fui uma testemunha privilegiada da sinfonia poética do meu pai. E a gente tem essa possibilidade de costurar os poemas em histórias;, conta o poeta. O improviso entra entre um poema e outro e são intervenções do próprio Carpinejar. A tempestade do início tem vários significados simbólicos. ;Todo recital é uma tempestade interior, e esse tem essa descarga elétrica de dois homens aprendendo a se amar a partir dos versos;, avisa.



Poesia de pai para filho ; Encontro de duas gerações
Com Fabrício Carpinejar e Carlos Nejar. Amanhã, às 21h, no Teatro dos Bancários (314/315 Sul). Entrada franca, mediante retirada de senha com 1 hora antes do início. Sujeito a lotação. Não recomendado para menores de 12 anos

Depoimento de Fabrício Carpinejar

;Apresento o nariz de meu pai, o jeito de pontuar perante a comida, o riso cortando as vogais da voz. Tenho do meu pai também o que não tenho dele. Eu achava sua letra bonita, escamosa, azul. Sempre procurei usar o mesmo tipo de caneta. Ando com duas no bolso diariamente. Ele experimentou cabelo comprido e barba. Morou em Portugal, na Alemanha, em hotel em Porto Alegre. Morou fora e dentro de si. Agora está com um rosto de criança, esverdeado. Suas mãos oferecem marcas de passaporte e outros carimbos e caligrafia. Eu já vi ele se barbear e se cortar com o retorno das mãos. O homem que se corta é meu pai. O homem que sangra é o meu pai. O homem que chora sem baixar a cabeça é o meu pai. Meu pai não sabe conversar longe. Ele me puxa para perto do seu sovaco. Ele conversa com as mãos em meus ombros. Meu pai tem 1,80 m e coloca boinas como uma forma acolchoada de pássaro. Se alguém me conta casos dele, eu escuto com extremada atenção para me encontrar. Eu sou meu pai. Meu pai gosta de suspensórios, de pastel, de mastigar lentamente as palavras. Meu pai dorme de óculos. Eu aproximo saudades. Saudade é cheirar a cabeça do filho, o cheiro de cria. Meu pai foi gordo, magro, mais ou menos. Nunca o vi jogar futebol, mas me levou uma tarde para o estádio na torcida errada. Ele colocou seu corpo em volta do meu. Não assisti ao jogo, e sim a seus braços para me proteger. Eu copiei sua fé. Meu pai ri alto. Não sabe contar piada, sabe contar estórias. Lê com voracidade, com os livros espalhados na cama. Perde as coisas com facilidade. Encontra as coisas quando não mais precisa delas. Tem mania por cartas. Um dia sem carteiro é um dia que ainda não aconteceu. Meu pai folheia jornal e revista sublinhando. Tomávamos suco e comíamos pastel em lancheria na rua Riachuelo. Era antes do almoço, no intervalo do serviço. Minha mãe ralhava porque eu não comia nada depois. Era segredo. Fingia falta de fome, o orgulho de ter segredos. Quem não guarda segredos está muito exposto. Eu guardo segredos para me inventar diante do mar. O pai acorda todo o dia diante do mar. Ele escuta música clássica. Música que não tenha letra. Ele é a letra. Meu pai fala do pampa como de um avô. Meu pai é a poesia. Eu nasci de sua emoção;, Fabrício Carpinejar

Texto de Carlos Nejar

Machado de Assis observa, com razão, que ;poesia não se aprende; traz-se do berço;. E é o caso de meu filho, Fabrício Carpinejar. Ele levava a poesia sem se dar conta, ou talvez ela que o levava e leva. Ouvi dele os primeiros versos, como ;a casa da ave é a casa do céu;.

Nunca descobri, na verdade, como carregava esta casa nas asas e nem importa. Nem investigarei se a poesia é a casa do céu. Ou vem do ar ou com as aves. Ou da respiração do pensamento.

Eu tinha a mania de recitar os versos na quietude, falando sozinho, o que não deixa de ser uma espécie de harmonia de tirar, do silêncio, o poema. Porque precisava saber o som e a entonação, o brilho das palavras. E Fabrício, adolescente, andava perto. Sem estranheza, porque ela vem apenas do que não conhecemos e talvez ele já intentasse recitar poesia, de tanto escutar, ou contê-la em si.

Com o tempo, vi meu filho escrever livros de poesia e se comunicar com desenvoltura. E o que percebo é que a poesia sempre o acompanhou, desde o murmurar da infância, ou quando acompanhava o meu sublinhar das leituras nos volumes, como se fossem pegadas de pirilampos. Ou os pirilampos o acordavam nos trechos marcados das páginas.

Hoje podemos recitar os poemas juntos, como o fazemos agora nos teatros de várias capitais, pai e filho, ainda que entendamos que a Poesia não tem mais pai, nem filho. Tem intimidade com o mistério. E não é a Poesia que necessita de nossas vozes, nós que precisamos que suas vozes se eternizem em nós, ou se eternizem de linguagem, além. Muito além de nós.

* Carlos Nejar é escritor e membro da Academia Brasileira de Letras.

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